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Histórias mal contadas

São factos do quotidiano, aparentemente sem qualquer importância, aos quais o autor dá a relevância do absoluto, do todo. É a sua obra-prima, sem prejuízo de outro entendimento.

Histórias mal contadas

São factos do quotidiano, aparentemente sem qualquer importância, aos quais o autor dá a relevância do absoluto, do todo. É a sua obra-prima, sem prejuízo de outro entendimento.

21.Dez.13

Vindima, Miguel Torga

Vasco Fernandes (Grão Vasco), Criação dos Animais

“Um cavalinho branco, que no primeiro plano iniciava o galope, deslumbrava-os (Catarina e Raul) particularmente. Irradiava dele tal pureza, que apetecia tirá-lo dali e soltá-lo num prado de erva tenra.” (página 226)

 

Desta vez[1] perdi o amor[2] ao livro. Fiz a leitura acompanhado de um lápis. Quando surgia uma palavra, frase ou figura de estilo mais interessante, sublinhava-a. Até fiz comentários à margem do texto (será o cúmulo do desamor?). Agora parece um livro de Direito. O que é certo é que os sublinhados, quais atalhos, ajudam a memória a reencontrar-se.

 

21 de dezembro de 2013.


[1] É a terceira vez que faço a leitura, sendo que as duas últimas ocorreram no outono.

[2] Edição de autor de 1994.

 

§

  

 

  

Acabei agora a Vindima. Mais uma boa colheita, é a segunda que faço, sempre com mais fruto e ainda mais saboroso. De capítulo a capítulo, com a duração adequada a podermos assentar as ideias captadas e a ganhar balanço para as vindouras, fez-se o trabalho sem cansaço nem fastio.

 

Convivi com os da Cavadinha, da Junceda e com a roga de Penaguião como se já os conhecesse há largos anos. Cada um representava, na perfeição, o seu papel numa estrutura social muito rígida, delimitada no comboio entre as carruagens de primeira e segunda, e nas quintas entre as casas do senhor e a cardenha[1].

 

Depois de bem pisados os cachos vindimados, pude ver refletido no mosto como que um manifesto contra as desigualdades sociais que tanto chocavam o de S. Martinho de Anta. Intercalado entre a denúncia das indignidades sofridas pelos de Penaguião, da hipocrisia vivida pelos Meneses e da ambição desmedida praticada pelo Lopes pude, ainda, apanhar alguns bagos de poesia. Eram versos curtos, mas prenhes de beleza que adocicavam, espaçadamente, a amargura do poviléu.

 

A paisagem e o estado do tempo impunham-se e condicionavam a vida a todos, rogados ou não, sendo que os primeiros, quando esfriava a festa pagã[2], tinham muitas saudades da Montanha. E às vezes o céu parecia solidário com as tristezas da terra. Houve até um dia em que a trovoada bradou por montes e vales, fulminou, primeiro, e alagou e arrasou, depois[3]. Tenho para mim (sou muito sugestionável) que foi uma reacção do céu à queda no abismo do infeliz do menino Alberto.

 

Vê-se que o de S. Martinho sofreu muito com as injustiças do Doiro e não podia deixar passar a oportunidade para as por a nu. Escrever este romance talvez tenha sido uma forma de aliviar a tensão, a revolta que o roía desde pequeno. Ele, que tinha visto a luz, queria abrir os olhos àquelas toupeiras de Penaguião e arredores. Coitados, andavam às turras às paredes[4].

 

E quanto ao amor, aos afetos e ao sexo? Neste aspeto há uma confusão ou fusão (talvez seja o termo mais apropriado), entre o sentimento que resulta da atração entre as pessoas, chamar-lhe-emos amor, e o bem, a verdade. Por isso, amar alguém com verdade, sem artifícios, sem segundas intenções (mais próprio dos homens que se aproveitam da ingenuidade das mulheres) é alvo de respeito e veneração pelos comparsas. Aos verdadeiros amantes tudo é consentido porque natural. Assim foi com o Gustavo e a Glória que puderam desfrutar na plenitude os benefícios de uma aventura espontânea e pura. O mesmo já não sucedeu à lorpa da Guiomar, também apelidada de pano de armar ou reca[5], que se deixou enganar pelas falinhas mansas do dr. Bruno. As más intenções do médico transformaram a perdição da menina num escândalo e numa humilhação para aquela e para a família.

 

É de admirar a clareza e sinceridade com que a história é contada, sem concessões ao facilitismo ou à ligeireza. De princípio a fim lê-se como quem vê um pedreiro a colocar pedra sobre pedra num muro de suporte. É evidente, para quem lê, que o pedreiro, em tempo corrijo para escritor, esforça-se por fazer uma obra reta, firme e perene, sem deixar de ser bela, ou melhor, por ser reta, firme e perene. E consegue-o. Palavra de escanção.

 

9 de dezembro de 2011.

[1]O Dicionário da Língua Portuguesa 2003, da Porto Editora, regista o termo cardenha, mas remete para cardanha, o vocábulo preferível. Trata-se de um regionalismo e significa «casa térrea onde os jornaleiros [trabalhadores a quem se paga um salário diário] dormem». Sobre a origem, o dicionário pergunta se vem «de cardar», dizendo que cardar vem «do lat[im] cardāre, ou de cardo+-ar». Por sua vez, cardo deriva «do lat[im] cardu-, "cardo; alcachofra"» O Dicionário Eletrônico Houaiss também registra cardenho (regionalismo de Portugal) e diz que se trata de «casebre pobre; cardanha, cardanho». Acolhe também cardanha, com significado semelhante («casa térrea e humilde»). Por extensão de sentido, também diz que é «casa onde dormem os jornaleiros». Quanto à origem, este dicionário resolve o problema considerando que é de «origem duvidosa» A forma masculina cardanho é equivalente a cardenho, mas significa igualmente «roubo de pequena monta, furto», «casa que se assaltou ou vai assaltar», «dedo, unha ("meter o cardanho")» (ibidem). in http://ciberduvidas.pt/pergunta.php?id=22692 

[2]Cfr: página 8 da 5.ª edição de autor.

[3]Cfr: página 229 da 5.ª edição de autor.

[4]Cfr: página 242 da 5.ª edição de autor.

[5]Cfr: página 219 da 5.ª edição de autor.