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Histórias mal contadas

São factos do quotidiano, aparentemente sem qualquer importância, aos quais o autor dá a relevância do absoluto, do todo. É a sua obra-prima, sem prejuízo de outro entendimento.

Histórias mal contadas

São factos do quotidiano, aparentemente sem qualquer importância, aos quais o autor dá a relevância do absoluto, do todo. É a sua obra-prima, sem prejuízo de outro entendimento.

28.Ago.10

Destino de uma paixão fulminante

 

 

AQUELA cereja carnuda, de um vermelho escuro, colhida na encosta serpenteada pela EN 2, no lugar de Parada de Cunhos (Vila Real), rebentou-me na boca e o suco, doce e amargo, numa proporção perfeita, inundou-me as papilas (1). De imediato veio-me à memória, por uma associação livre e espontânea de ideias, a hesitação do filho da Teodósia.


Mas que raio de rapaz. Depois daquela paixão fulminante pela Natália, aliás correspondida, não soube ou não teve coragem para a pedir em casamento. Mas terá sido assim? Será que a história foi bem contada ao Miguel? E se o irmão Adolfo inventou aquele final tão triste de um amor tão promissor? Sim, porque o Miguel, coitado, desde a ida para o Brasil pouco convivia com o povo e não podia confirmar os factos todos. Por outro lado, a rapariga é que se meteu com ele. O que teria mais força: a hesitação dele ou a espontaneidade dela?


Por isso, decidi tirar a história a limpo. Desci ao povoado e, enquanto refrescava a garganta num café à beira da estrada, fui perguntando aos Adolfos que por ali se serviam do seguimento daquele encontro.


Todos os Adolfos que ouvi, incluindo um de S. Martinho da Anta e outro dos Louvados, desdisseram a versão que o Miguel contava in "Destinos” (Novos Contos da Montanha, 12.º edição Coimbra, página 83 a 89).


Assim, a versão verdadeira e não fictícia é a que agora passo a contar:

 

--/--

 

Uma paixão fulminante (2)

Fonte: http://contosdeaula.blogspot.com

Foram uns amores singulares, aqueles. No Junho, as cerdeiras punham por toda a veiga uma nota viva, fresca e sorridente. As praganas aloiravam, as cigarras zumbiam, as águas de regadio corriam docemente nas caleiras, e dos verdes maciços de folhas leves e ondulantes, emoldurados no céu, espreitavam a primavera, curiosos, milhares de olhos túmidos e vermelhos. Era domingo. E ele subira por desfastio à velha bical dos Louvados a matar saudades de menino.
- Não dás um ramo, ó Coiso? - perguntou do caminho a rapariga.

- Dou, dou! Anda cá buscá-lo. Pela voz, pareceu-lhe logo a Natália. Mas só depois de arredar a cabeça de uma pernada é que se confirmou.

- Não estás de caçoada? - Falo a sério!

Era bonita como só ela. Delgada, maneirinha, branca, e de olhos esverdeados, fazia um homem mudar de cor.

- Olha que aceito! - E eu que estimo... Tinha já no chapéu algumas cerejas colhidas, reluzentes, a dizer comei-me.

- Não teimes muito...

- Valha-me Deus!... A rapariga atravessou então o valado, entrou na leira e chegou-se, risonha.

- Segura lá na abada... Encandearam os olhos um no outro, ela de avental aberto, ele de rosto afogueado, deram sinal, e a dádiva desceu, generosa e doce.

Vista de cima, a Natália ainda cegava mais a gente. O queixo erguido dava-lhe um ar de criança grande; os seios, repuxados, pareciam outeiros de virgindade; e o resto do corpo, fino, limpo, tinha uma pureza de coisa inteira e guardada.

- Terão bicho?

- Têm agora bicho! Ia-te mesmo dar cerejas com bicho!

Sem querer, a resposta saíra-lhe expressiva demais. O coração agitou-se um pouco, o instinto, acordado, estremeceu, e os olhos, culpados, fugiram-lhe do rosto da moça e fixaram-se sonhadoramente no céu.

- Bota cá mais meia dúzia. Já que comecei... À medida que se enfarruscava de sumo, a Natália ia-se tomando também num fruto que apetecia colher. Mas recusou-se a vê-la com pensamentos desejosos e atrevidos.

- Segura lá esta pinhoca... Era um lindo ramo que fora buscar à coroa quase inacessível da árvore. As cerejas, libertas da sombra protectora das folhas, tinham-se dado inteiramente ao sol, deixando-se amadurecer por igual, num abandono quente e ditoso.

- Que lindo! - É para que saibas... Concentraram a atenção um no outro, e de tal modo ficaram fascinados, que se ela não dá um grito de aviso, com a oferta vinha o doador também ao chão.

- Cautela!

- Não há perigo. No enlevo em que ficara, o desgraçado até se esqueceu do sítio onde estava.

- Queres mais? - Não, bem hajas... Pôs-se logo a descer, um pouco atarantado por lhe faltarem já as palavras que lhe havia de dizer cá na terra. Ela é que entretanto se escapulira. - Adeus!...

O namoro, contudo, tinha começado. Sem nunca falarem daquela tarde, sabiam ambos que se amavam e que fora a velha cerdeira bical que lhes aproximara os corações. Pena ele ser o que era: uma natureza tímida, incapaz de um acto rasgado e levado ao fim.

Falavam ao cair da tarde, quando a fresca do anoitecer aligeirava o cansaço das cavas, sem que ninguém reparasse, pois a povoação aceitara já aquela união como um facto natural e acertado - e o rapaz ainda a meio do caminho, atarantado e reticente. (3)

E sem que ninguém reparasse, o tempo foi passando e o namoro tornando-se mais vivo. Pudera, o tempo estava de feição e a rapariga era toda atiradiça.

Só o João Neca, que morria de amores pela Natália, não aceitava aquela inclinação natural e acertada. Mas havia de perder as esperanças.

Se havia…

Era um Setembro puro. Videiras que pareciam cedros e cachos com b a g o s como bugalhos. Manco, o Tafona foi-se arrastando e ainda a tarde vinha a cair além-Doiro já ele estava no seu posto, sentado, imóvel e silencioso, com a arma engatilhada sobre a coxa.

Como habitualmente, quase nem respirava. Por muito inocentes que fossem os láparos, farejavam ruído a cem léguas. E o Tafona, conhecedor daqueles ouvidos, apertava os pulmões.

A espera nunca lhe dava inteira paz de espírito. Forçava-o a uma espécie de compromisso com a parte traiçoeira da vida, estremando os campos do agredido e do agressor. Entre ele e o bicho não havia, daquela maneira, um verdadeiro encontro, um embate de forças. Tudo se passava sem alegria e sem eco, choque abafado, como o de uma pinha aberta a cair no musgo.

Subitamente começou a sentir sons indistintos. Prestou atenção. Passos. Passos de gente, e grande.

- Bolas! - disse, sem abrir a boca.

De facto, perdera o tempo. Para que tudo retomasse a quietude inicial e os coelhos se resolvessem a vir gozar a fresca, seriam precisas horas, e então já não teria luz.

Os passos eram da Natália, sorrateira, a saltar um bardo e a sumir-se na vinha.

- É boa!... - murmurou outra vez intimamente, agora noutro tom.

Mas ainda o seu espanto não acabara, já o rapaz, do lado do monte, lépido, deslizava para o meio da ramagem.

Riu-se. Desta vez riu-se com a sua mansidão habitual, sem barulho, enternecidamente, como se estivesse nos velhos tempos e visse no azul do céu dois pintassilgos a voar para o mesmo ninho.

Infelizmente, os namorados a desaparecerem, e sobre eles, de nariz no rasto, numa perseguição de rafeiro, o João Neca que, por acaso, caminhava direito à arma do caçador.

O Tafona nem teve tempo de pensar. Parou a respiração e encolheu-se quanto pôde atrás do esconderijo.

O abelhudo vinha apressado e chegou a tiro.

- Alto lá! - ordenou-lhe então, sereno, mostrando o corpo.

O João Neca estacou, apalermado. Por fim viu quem era e falou-lhe:

- Sou eu, ó ti Zé! - Bem sei. Mas não te mexas.

- O João Neca, ti Tafona. Deixe-me ir salvar a infeliz!

A tremer e de olhos esgazeados, o zeloso ciumento não conseguia perceber. Mas o Tafona tinha-lhe friamente a espingarda endireitada ao peito, e ninguém da aldeia confiava na alma solitária do caçador.

- Alto, e nem tugir nem mugir! Aquelas coisas querem-se na paz do Senhor... (4)

Os meses sucederam-se, as folhas caíram e sempre que se cruzavam comiam-se com os olhos.

Claro está que a rapariga acabou por engravidar e o casamento fez-se à pressa, para se acertar de vez com a inclinação natural de ambos.

Quando era outra vez Junho, as searas aloiravam já, e nas cerdeiras, polpudas, rijas, as cerejas tomavam uma cor avermelhada e levemente escarninha, o filho acordou cedo a gritar com a mesma fome do gado.

Foi aquela felicidade que, à tarde, quando regressou da jorna, lhe fez dizer à mulher, depois de pegar no cachopo ao colo e de olhar da janela o mundo outra vez coberto de sonho:

- Não há riqueza como a nossa, ó Natália! (5) (6)

--/--

E deste modo retomei o caminho de regresso a casa, passando a circular no IP4, bem paralela à EN15, até deixar o Reino Maravilhoso, ali no Alto de Espinho, todo satisfeito por ter reposto a verdade.


Em casa, bem longe daquele Reino Maravilhoso, pensei de mim para mim:


- O que é preciso, para ver o que se passa naquele mundo, é que os olhos não percam a virgindade original diante da realidade e o coração, depois, não hesite.(7)

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(1) Adaptação de parte de um post de Manuel Jorge Marmelo in http://teatro-anatomico.blogspot.com/ de 22-07-2010, com o título "Uma paixão fulminante
(2) Título retirado de um post de Manuel Jorge Marmelo in http://teatro-anatomico.blogspot.com/ de 22-07-2010.
(3) Adaptação de parte do conto de Miguel Torga "Destinos” in Novos Contos da Montanha.
(4) Adaptação de parte do conto de Miguel Torga "O Caçador” in Novos Contos da Montanha.
(5) Adaptação de parte do conto de Miguel Torga "Um filho” in Contos da Montanha.
(6) Os textos dos contos foram retirados do blogue http://contosdeaula.blogspot.com/
(7) Miguel Torga - Um Reino Maravilhoso (Trás-os-Montes).
 

Publicado no dia 9 de Agosto de 2010 no blogue "O meu JN”