Ontem, hoje e amanhã
A VIAGEM estava monótona e ele desesperado por parar e ver coisas novas.
O destino era a flor de pedra e de luz (1) e ainda não tínhamos avistado as ondas de barro (2), que se sucedem sem naufrágios e sem abismos. Iríamos talvez ao km 50,000 da A13. Como remédio para aquele desconsolo pusemos o CD do José Cid.
A dado km o rapaz já não estava ali. Tinha acabado a impaciência.
Que música era aquela que o tinha hipnotizado? Que história era aquela que o tinha afastado da nossa companhia? Por que motivo estava tão inebriado?
Nem mais nem menos do que a canção: "Ontem, hoje e amanhã”.
Ontem eras a menina mais alegre e
mais bonita que eu já conheci.
Laçarote no cabelo e um fato à
marujo feito de cetim.
Fazias-me as contas de multiplicar
e no fim das contas,
íamos brincar às casinhas, aos cowboys,
aos polícias e ladrões,
já eu te amava sem saber.
Ontem, hoje e amanhã.
Hoje dormes a meu lado mas eu
fico acordado vendo-te a dormir.
Chego tarde e cansado do trabalho da
cidade esperas-me a sorrir.
E vejo-te abraçar a mim com tal calor,
fazes-me esquecer o dia que passou.
Numa tarde de aluguer,
lado a lado para viver.
Ontem, hoje e amanhã.
Ontem, hoje e amanhã.
Ontem, hoje e amanhã.
Ontem, hoje e amanhã.
Amanhã no fim da vida, hás-de ser a
minha querida, o meu grande amor,
partiremos de avião pró Egipto,
pró Japão ou pró Equador.
Temos pouco tempo para recordar.
Sabes, nunca é tarde para começar.
Ontem, hoje e amanhã, reviver um grande amor.
Ontem, hoje e amanhã.
Ontem, hoje e amanhã.
Ontem, hoje e amanhã.
Ontem, hoje e amanhã. Amanhã.
Aquele "amor perfeito” já me havia agarrado quando tinha a idade dele. Agora a cena repetia-se e eu era um espectador experimentado.
Lembrei-me então das aulas de filosofia do 12.º ano no Alexandre Herculano (1984/85). O que ouvi, li, reli e escrevi durante meses aplicava-se agora na perfeição ao momento. Afinal, Immanuel Kant tinha razão com a sua teoria do idealismo transcendental: todos nós trazemos formas e conceitos à priori (aqueles que não vêm da experiência) para a experiência concreta do mundo, os quais seriam de outra forma impossíveis de determinar.
Immanuel Kant 1724 - 1804
PELOS vistos, o rapaz estava e está dotado do conceito à priori do "amor perfeito”, que o pai também possuía e possui, que outros rapazes também possuem, que milhões de rapazes possuem.
Depois do almoço, refeitos da viagem, enquanto passeávamos em torno do templo de Diana, éramos o passado e o presente de um conceito à priori universal que outros, no futuro, haverão de ser portadores até que se apague a memória do ser humano.
Talvez um dia a história far-se-á, não dos objectos e factos que constituem a concretização de conceitos à priori, mas dos próprios conceitos.
1) Miguel Torga, in Portugal, 7.ª edição, página 88.
2) Miguel Torga, in Portugal, 7.ª edição, página 85