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Histórias mal contadas

São factos do quotidiano, aparentemente sem qualquer importância, aos quais o autor dá a relevância do absoluto, do todo. É a sua obra-prima, sem prejuízo de outro entendimento.

Histórias mal contadas

São factos do quotidiano, aparentemente sem qualquer importância, aos quais o autor dá a relevância do absoluto, do todo. É a sua obra-prima, sem prejuízo de outro entendimento.

15.Nov.10

O sensor

 

Foi um final de dia surpreendente.


A tarefa era morosa e se calhar árdua. Por isso tínhamos pedido reforços: mais dois adultos para o que desse e viesse. Os móveis de escritório tinham que ser levados dali para fora, mais precisamente dali para baixo. Começamos por desaparafusar as estantes com chaves universais. Mas o trabalho não rendia.


Lembrei-me então de transportar as coisas pelo elevador. Só o simples pensar na solução transmitiu-me uma sensação de alívio. O meu corpo relaxou com a perspectiva da facilidade. Fomos comparar os espaços e percebemos que seria à justa. Mesmo assim arriscamos.

 

Acondicionada a estante no interior da cabine, faltava fechar a porta e deixar ir cabo abaixo. O rapaz, como era o único que cabia no espaço livre, lá se instalou. Contudo, a porta recusava-se a fechar, apesar não ter nenhum obstáculo à sua frente. A explicação era simples: o sensor, situado um pouco no interior, incidia na estante e não fazia retorno. A máquina não tinha ordem para actuar, digo fechar. Os outros ainda desistiram. Mas eu não fiquei convencido. Se a função do sensor era proteger os utilizadores do embate inesperado da porta, em especial as crianças, ela estava cumprida e mais que cumprida. Não havia motivo para não seguir viagem. Era preciso convencer a máquina que estava tudo bem, que não havia problema. Não sendo possível o convencimento, a solução seria a ilusão.

 

Como iludir o sensor? Como enganá-lo? Parei um pouco e deixei o pensamento procurar uma solução. Eureka! O retorno do sinal só poderia ser possível com um espelho. Sim! um espelho. Era preciso um espelho. Indagou-se em tudo quanto era sítio e ele acabou por dar a cara, como quem diz, aparecer.


Regressados à posição inicial, o rapaz colocou o espelho e o logro concretizou-se: a porta fechava-se.

 

Inesperadamente, outro problema ainda mais grave se me colocou. O rapaz ia no elevador sem mim. Podia acontecer alguma avaria e ele ficava sozinho e trancado entre a estante e a parede da cabine. Ainda vi se o outro elevador estava presente, ainda me disseram que não demorava nada a chegar, mas foi impossível iludir a aflição. Desatei a correr pelas escadas abaixo sempre a convencer-me que tudo estaria bem. Foram seis andares, muitas escadas e patamares corridos com a culpa nas mãos. Tinha pensado em tudo, menos nele. Quase no final da descida ouço o elevador a abrir e chamo por ele, respondendo-me que estava tudo bem. Deixo cair a culpa, talvez no piso dois, e depressa chego à sua presença. Agarro-lhe a cabeça contra o meu peito, liberto-a e dou-lhe um beijo na testa.


- Boa MacGyver! – Disse aliviado.

 

13 de Novembro de 2010.


Publicado in Histórias mal contadas

10.Nov.10

Um tesouro sobre rodas

 

Àquela hora chegar a casa é um tirinho.

 

Enquanto a maioria via o telejornal, nós circulávamos na A1 sem dificuldades e congestionamentos.

 

A dada altura, entre o km 300 e o 299, o trânsito começa a abrandar. Talvez fosse algum condutor menos habilidoso a embaraçar aquela fluidez. Entre os habituais fura filas e a lentidão forçada lá fomos esperando o próximo desvio.

 

Por coincidência, o dito empecilho também seguia a nossa direção.

 

Pronto! Não havia nada a fazer. Era só ter paciência, pois dentro em breve o percurso terminaria.

 

Foi no momento em que nos aproximávamos do "desmancha-prazeres” que soubemos a explicação daquela condução tão cautelosa.

 

No interior, ele ia à frente e ela atrás muito atenta ao bebé deitado na cadeirinha.

 

Para onde fossem iriam sempre assim. A cuidar do seu tesouro.

 

Aquele condutor, contrariamente ao inicialmente pensado por nós, seguia de modo que, atendendo à carga transportada, pudesse, em condições de segurança, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente (cfr: artigo 24.º do Código da Estrada).

 

Agora, com a estrada toda livre à nossa frente, deixamos de ter pressa e pusemo-nos a pensar no tesouro que nos aguardava lá em casa.

 

20 de Junho de 2010


Publicado in Histórias mal contadas 

01.Nov.10

O banco duplo

 

 

Aquele momento costuma ser mágico, relaxante e inspirador. Cheguei e escolhi a parte do banco duplo virada para a esplanada. Nas minhas costas estavam dois homens a conversar. Iniciei a leitura pelo jornal. A revista fica sempre para último. A folhas tantas, apercebi-me que o banco se abanava. De imediato pensei que estaria manco.

 

Talvez tivesse uma perna mais curta que as restantes. Mas o movimento repetia-se e agora de modo mais rápido. Concentrei-me e senti que os solavancos eram provocados pelo meu vizinho. O homem, já de idade avançada, tinha com certeza um problema de saúde.

 

Eu podia mudar de banco, mas optei por ficar. Só que não fiquei por ali. Deixei-me embalar pelos pensamentos que me conduziram ao alto mar do futuro. E vi claramente visto a possibilidade de ficar assim: vacilante.

 

Desperto para o jornal, passei a aceitar com naturalidade aquele balançar. Conclui que, afinal, estávamos os dois no mesmo barco. E desejei que aquela doença, se algum dia aportar na minha ilha, me permita flutuar com dignidade e, se calhar, descobrir novos mundos.

 

Quando cheguei a casa e me perguntaram onde estive, respondi:

- Estive no Intervalo… da realidade!


Publicado in Histórias mal contadas

01.Nov.10

Talento

O talento é preciso, mas é preciso também que o meio ajude. Que sustente o artista e lhe dê pedra capaz, barro moldável, madeira propícia, e lhe não tolha as mãos de frio, se ele escreve ou pinta.

Miguel Torga, in Portugal, 7.ª, página 70