Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Histórias mal contadas

São factos do quotidiano, aparentemente sem qualquer importância, aos quais o autor dá a relevância do absoluto, do todo. É a sua obra-prima, sem prejuízo de outro entendimento.

Histórias mal contadas

São factos do quotidiano, aparentemente sem qualquer importância, aos quais o autor dá a relevância do absoluto, do todo. É a sua obra-prima, sem prejuízo de outro entendimento.

20.Mar.11

Carta de Miguel Torga a um escritor ocasional

 

 

 

Naquela segunda-feira fria de Dezembro, fui acordado pela fria luz que precede a madrugada[1].


Tinha uma diligência judicial agendada para as 9h 30m em Coimbra, mas antes queria aproveitar para pagar a assinatura anual da Revista de Legislação e Jurisprudência na Coimbra Editora, ali na rua do Arnado.


Por isso, saí bastante cedo para localizar a rua e estacionar com tempo e evitar contratempos.


Sim! porque sair na A1 em Coimbra Norte, seguir pelo IC2 e desaguar na rotunda que antecede a avenida Fernão de Magalhães, era quase certo enganar-me no trajecto. Da última vez galguei do vale pelas encostas daqueles mudos montes[2] - para ser mais directo - andei perdido na rua da Figueira da Foz e de Aveiro. Sempre que ali chego sou como um pulso sem cabeça ao volante a guiar[3]. As setas, desvios, marcas, sinais, semáforos, bandeiras, outdoors, mupis, carros, carrinhas, camionetas, camiões, motos, são tantos que fico atarantado. Eu bem quero circum-navegar em direcção à baixa, mas aquela é a rotunda das minhas tormentas. O homem sonhou, a obra nasceu e agora Deus é quem me atura[4].


Só que desta vez, ao me aproximar da saída Coimbra Norte, lembrei-me do conselho da minha colega que em Novembro último, tendo presenciado ao vivo mais um desacerto, me sugeriu a saída Sul. Decidi arriscar e segui em frente. Tirando umas hesitações antes de atravessar o rio Mondego, o trajecto pela saída Sul foi muito fácil e simples. Valeu a pena. Tudo vale a pena, quando a vontade não é pequena.[5]


É importante salientar que, por mero acaso, levava comigo um exemplar da última versão das “Histórias mal contadas” que no dia anterior tinha acabado de rever.


Quando cheguei a Coimbra, um frio vento passava por aquela fria terra[6]. O que me aguentava era o casaco tipo canadiana comprado recentemente.

Depois de umas voltas entre as ruas da Sofia, João Machado e João de Ruão, acabei por estacionar por detrás do Pingo Doce, uma viela feia e suja atribuída a Rosa Falcão. E logo uma senhora, por sinal doutora.


A pé calcorreei as mesmas ruas. Primeiro cumpri a minha obrigação pecuniária. A seguir deambulei entre varas e juízos até atinar com a secção e dar por satisfeita a minha outra obrigação: a profissional.


No regresso ao carro, a meio caminho entre o Palácio de Justiça e a Torre Arnado Business Center, na rua Dr. Manuel Rodrigues, entretive-me junto à paragem de autocarros a ver as gordas das primeiras páginas encavalitadas no quiosque instalado à entrada de um edifício. Não sei porquê – ainda hoje não encontro explicação para o sucedido -, olho para o meu lado esquerdo e avisto ao virar da esquina, vindo da rua da Sofia, um sujeito alto, seco de carnes, magro como um espeto e carrancudo, todo embrulhado num sobretudo. Aquele nariz adunco e queixo saliente eram-me familiares. Aquele perfil de contrabandista espanhol dizia-me qualquer coisa, quer dizer, já tinha dito.


Entretanto, aproxima-se e fica ao meu lado a apreciar as últimas.


A dada altura passa um estranho e salva-o:

- Bom dia doutor!


Ele retribui, mas de forma abreviada, sem atribuir qualquer título.


Ora ali estava eu diante do otorrinolaringologista Adolfo Correia da Rocha, que também usava o nome de Miguel Torga.


Ganhei coragem e perguntei-lhe se estava interessado em dar uma olhadela à minha primeira obra. Quis saber se era possível perder um pouco do seu tempo contado para comentar aquelas quatro histórias (se calhar mal contadas).


- Não me importo! Só espero que valha o acaso.


Enquanto me acompanhava ao carro foi-me dizendo que era contra os caçadores de autógrafos, que o seu forte era mesmo o ser do “contra”, mas que nunca tinha feito uma tratantice a um colega das letras[7]. Ainda bem! pensei eu.


Dei-lhe um exemplar de capa branca, sem qualquer mácula. Guardou-o no bolso largo e fundo do sobretudo e despedimo-nos sem mais. Não havia mais nada para dizer, não fosse ele melindrar-se com alguma observação inocente da minha parte.


Encetei a viagem de regresso cismento com o encontro e curioso em saber a opinião daquele pintor frustrado (foi ele quem me contou).

A resposta não tardou, veio direitinha pelo correio plasmada numa folha branca e com letra de máquina.


 

          “Coimbra, 13 de Dezembro de 2010

 

Meu prezado Camarada:

 

          Muito agradeço o exemplar do seu livro “Histórias mal contadas”. Li-o logo que cheguei ao consultório.

          Li-o e gostei dele. A sua sensibilidade é de tipo igual à do José Régio – é confundida, em si mesma, com a inteligência. O que em si é ainda por aperfeiçoar é o modo de fazer uso dessa sensibilidade. Há que separar mais os dois elementos, que naturalmente a compõem; ou que confundi-los ainda mais. Uma análise instintiva que coloque a sensibilidade desintelectualizada perante a inteligência dessensibilizada, em contraste, diálogo e reparo; ou uma síntese em que desapareçam os traços de haver dois.

          Não creio impossível que qualquer, ou ambos, destes processos sejam por si atingidos num futuro próximo da sua consciência de si mesmo.

          Intelectualmente – e portanto artisticamente – falando (a arte não é mais que uma manifestação distraída da inteligência), a sensibilidade é o inimigo. Não o inimigo que se nos opõe, como na guerra, mas o inimigo a quem nos opomos, como no amor. Há que vencer, pois, não por esmagamento, mas por sedução ou domínio. Chamar a sensibilidade para dentro da casa da inteligência; ou fazer a inteligência montar casa externa à sensibilidade. Imagens? Como o universo…

          Mas, em suma, gostei do seu livro, e por ele o felicito.

Com a melhor camaradagem e apreço,

Miguel Torga[8]

         

Apesar das felicitações, não gostei da comparação com José Régio, nem da brincadeira das imagens.

 

- Ia eu agora – um ser inteligente - montar casa externa à sensibilidade!? - Desabafei.

 

Por isso, não esperou pela demora e na volta do correio escrevi-lhe simplesmente:

 

         A “consciência de si mesmo” num escritor, quando tomada num sentido exagerado, como o seu, aniquila toda a expressão sincera e desconcertante.

          E qualquer elevação num escritor de tal ordem, é convencional e flagrantemente postiça.”[9]

 

Escrevi “postiça” a negrito e sublinhado, propositadamente, para realçar a minha profunda discordância quanto ao conceito de literatura perfilhado. Não obstante estarem preenchidos os requisitos previstos no artigo 502.º do C.P.C., até à data, não houve lugar a réplica.

 

Assim, da próxima vez que for a Coimbra vou ver se o encontro de novo e, quem sabe, surpreendê-lo num dia a “favor”.

 

Publicado in Histórias mal contadas



[1]Adaptação de um verso de Fernando Pessoa do poema “Viriato” in Mensagem, página 37, da Oficina do Livro.

[2]Do poema “Fernão de Magalhães” in Mensagem, página 93, da Oficina do Livro.

[3]Idem.

[4]Do poema “Infante” in Mensagem, página 79, da Oficina do Livro.

[5]Do poema “Mar português” in Mensagem, página 97, da Oficina do Livro.

[6]Do poema “D. Fernando, Infante de Portugal” in Mensagem, página 55, da Oficina do Livro.

[7]Cfr: páginas 98 a 100 da”Fotobiografia de Miguel Torga”, de Clara Rocha, da Publicações Dom Quixote.

[8]Adaptação da carta de Fernando Pessoa dirigida a Miguel Torga in “Fotobiografia de Miguel Torga”, de Clara Rocha, da Publicações Dom Quixote, página 52.

[9]Adaptação da resposta de Miguel Torga à carta de Fernando Pessoa in “Fotobiografia de Miguel Torga”, de Clara Rocha, da Publicações Dom Quixote, página 54.

13.Mar.11

O guarda-redes

 

(Meu caro leitor, desde já te advirto que esta história é muito triste, mesmo muito triste. Tem como mote o poder de autoridade de uma mãe, viúva. Trata-se de um poder originário, contemporâneo da sua condição de progenitora, aceite pela sociedade e posteriormente convertido em Lei (cfr: artigos 1877.º e seguintes do Código Civil). À data dos factos (1978?) pareceu-me que aquele poder tinha sido exercido de modo excessivo e desproporcionado. Hoje, na qualidade de filho e de pai, penso do mesmo modo.)

 

Viviam naquela rua inclinada, exposta aos ventos do sul e à sombra húmida do amanhecer, bem no cimo da encosta do vale, no lugar dos Bacelos.

 

O pai era um homem pequenino que usava sapatos de salto alto. Longe das vistas, anunciava à vizinhança a sua chegada ou partida simplesmente com o caminhar. Muito discreto e cordial não criou animosidade com os vizinhos. A sua morte prematura sobressaltou o lugar e manchou de luto para sempre a companheira.

 

Até ao último suspiro do homem, parecia uma família feliz.

 

Deixou a mulher e quatro rapazes, de idades separadas por um ano.

 

O luto foi superado e os rapazes foram crescendo, muito pouco como os pais, mas foram crescendo.

 

Desde então o homem da casa passou a ser ela: a viúva. Triste, desconfiada, severa e cruel trazia os rapazes com rédea curta. Nenhum lhe escapava ao poder de autoridade: umas vezes em forma de berros, ameaças, outras em forma de cinto e fivela, bem espalhadas pelo corpo indistintamente.

 

O povo tinha dó daquela canalha que crescia ao sabor da dor e da angústia. Mas nada podia fazer. Todos respeitavam a mulher que era como um pai para os pequenos.

 

O mais novo e mais franzino, começou por jogar à bola na baliza, pois à falta de melhor era sempre a vítima para o lugar que ninguém queria. Os jogos corriam sempre bem para ele. As duas pedras que simulavam a baliza beneficiavam-no. Nunca se sabia ao certo por onde teria passado a bola e a discussão sobre a posição da barra imaginária era recorrente, mas de pouca dura. Os rapazes o que queriam era jogar à bola. Para a próxima vez e de maneira a evitar dúvidas teriam de rematar bem forte de modo que passasse por debaixo do corpo do guarda-redes. Só que o guarda-redes era destemido e não tinha receio da dor das quedas no saibro ou na terra. Defendia com exuberância e sucesso.

 

Os jogos tornaram-se famosos entre as equipas do vale. O Boavista, o Vale de Achas e o Susão eram as equipas mais temidas, mas superáveis em momentos de inspiração, bastava o mais novo aparecer.

 

A viúva, no entanto, nem sempre dava o prazer à equipa dos Bacelos de ter o seu grande guarda-redes. Umas vezes porque não, outras vezes porque não convinha, o rapaz ficava em casa a cuidar da pequena horta situada nas traseiras da casa.

 

Era sempre ao sábado à tarde, entre a Primavera e o Outono, que decorriam os grandes jogos nos campos abandonados da encosta.

 

O confronto mais importante da pequenada dos Bacelos seria, porém, numa sexta-feira, por sinal santa, pois o sábado era tarde demais e o feriado vinha a calhar. O adversário era o Boavista e o local escolhido o campo da Cana [1], mais propriamente o recreio da escola primária. O rapaz não podia falhar e a mãe tinha de permitir aquela façanha.

 

Mas aquele dia seria de azar.

 

Estava tudo combinado entre as equipas para se começar às duas horas da tarde, mudava-se aos dez e acabava-se aos vinte.

 

Para o mais novo, o dia nasceu ansioso. Depois de beber o café estreme [2]pela manhã, a mãe chamou-o para lhe dizer que o queria em casa às três em ponto. Às três sem concessões.

 

Teriam de fazer tudo, mesmo tudo, para que o jogo terminasse antes das três horas, porque senão perdiam o seu guarda-redes.

 

À hora aprazada iniciou-se o jogo com muita algazarra, sempre sem árbitro, mas com observância das regras básicas e sem violência entre os contendores. Um golo dum lado, outro do outro e o resultado ia aumentando de forma lenta, ao contrário do habitual. As equipas estavam a aprender a defender-se. Quando se aproximou das três horas, ainda faltavam cinco golos para o desfecho da partida, estando o Boavista à frente. Todos estavam a par de que o filho da viúva tinha de sair um bocadinho antes das três.

 

O mais novo, perante o resultado do jogo e a iminência dos Bacelos perderem o embate, e para espanto de todos, decidiu manter-se na baliza. E foi defendendo, defendendo, até que o Bacelos passou para a frente. Estava 18-17.

 

Já passava meia hora das três, e tudo apontava para a vitória dos Bacelos.

 

Mas, de repente, surge a viúva à entrada do campo com uma chibata na mão.

 

Todos, de uma só vez, olham para a mulher. Param. Deixam a bola correr à sorte. De seguida dirigem o olhar para o filho que se encontra no extremo do campo. Este, perante as atenções de todos, olha para o chão e depois deixa cair a cabeça.

 

Um silêncio de medo amordaça a rapaziada. Os corpos suados esfriam de temor enquanto o sol é encoberto por nuvens traiçoeiras [3]que o vento vai empurrando. O sacrifício estava eminente. Para resistirem, mordem os lábios salgados.

 

De cabeça baixa, o guarda-redes abandona a baliza e caminha em direção à mãe. Abre-se uma clareira entre ambos. O percurso é feito de modo lento, sem hesitação e de olhos cravados no chão.

 

Chegado à presença da mãe, esta só pergunta:

- Não te disse para chegares às três?

 

Em ato contínuo, sem esperar pela resposta, vibra de forma enérgica e certeira com a chibata no rapaz. Este ainda tenta fugir, mas é intercetado com novas vergastadas. Rende-se. Deixa-se bater [4]. Impassível toma o caminho de regresso a casa.

 

Não há lágrimas, mas os lábios passaram a saber a vinagre.

 

Ela não olha para os rapazes e como um íman segue-o.

 

Ninguém fala. Só se ouve o silêncio.

 

Os dois descem a rampa calados, com os vizinhos a esconderem-se por detrás das vidraças. Dentro de casa a cena repete-se.

 

No campo da Cana, o jogo termina com a derrota de todos.

 

Daí por diante, nunca mais vão poder olhar de frente para o guarda-redes. O seu olhar ficou cravado no saibro, enquanto a sua alma ferida pela chibata vagueará naquela encosta do vale até que a memória dos rapazes, narrador incluído, se apague e a tinta desta folha seja safada pelo tempo.

*

Uma última, pequena, singela e enigmática nota: em Valongo, depois destes anos todos (1978?), ainda há quem afirme e jure a pés juntos, com os joelhos dobrados e as palmas das mãos encostadas uma à outra, que naquele dia, durante a noite, ouviu o pai dos rapazes subir e descer a rampa a soluçar.

 

Post-scriptum: No dia 26-02-2011, já depois de fixado este texto, tive conhecimento, em casa dos meus pais, que o guarda-redes tinha falecido em 2010. Perturbado, dirigi-me ao alpendre, olhei a serra de Santa Justa - minha confidente -, e depois de um suspiro, ambos pensamos: "Mas Deus leva os que ama/Só Deus tem os que mais ama.” (cfr: http://www.tugamusica.com/trovante-cifra-125-azul#).


Publicado in Histórias mal contadas


[1]Jogamos em vários sítios, mas nunca no lugar do Calvário. Talvez por ser um lugar muito sujeito a invasões de campo.

[2]Esta palavra esteve no banco de suplentes durante vários anos, até que ao parágrafo 15.º entrou em campo, leia-se folha. O jogo, entenda-se escrita, ficou mais genuíno, mais puro, sem misturas. Não confundir com "estrema”, sempre titular nos jogos de direito de demarcação (cfr: artigo 1353.º do Código Civil).

[3]Sempre que leio a expressão "nuvens traiçoeiras” sou tentado a ler "nuvens passageiras”, o que me remete para a canção da telenovela "O Casarão” (1976) com o título "Nuvem Passageira” (cfr: http://pt.wikipedia.org/wiki/Hermes_Aquino). À força de cantar e ouvir o refrão, parece que a palavra "nuvem” passou a estar associada a "passageira”.

[4]Tal como Ele, o mais novo deve obediência aos pais (cfr: n.º 2, do artigo 1878.º do Código Civil, ab initio).