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Histórias mal contadas

São factos do quotidiano, aparentemente sem qualquer importância, aos quais o autor dá a relevância do absoluto, do todo. É a sua obra-prima, sem prejuízo de outro entendimento.

Histórias mal contadas

São factos do quotidiano, aparentemente sem qualquer importância, aos quais o autor dá a relevância do absoluto, do todo. É a sua obra-prima, sem prejuízo de outro entendimento.

08.Mai.11

O beijo

 

 

 

Acordo. Estou vivo! Olho as horas no rádio despertador. 7h 13m. O dia está luminoso. É o início da Primavera. Levanto-me. Vou ao quarto de banho. Depois à cozinha. Como uma maçã. Saboreio o sumo doce. Royal gala. Um regalo! Vou tomar banho. Pego na roupa interior. Ando levezinho para não os acordar. A água tépida sabe bem. Apetece ficar mais tempo debaixo da água. Ela já se levantou. Corto a barba. O rapaz aparece estremunhado. Vai tomar banho. Eu saio. Visto-me. Hoje é dia de diligência judicial. Escolho a gravata bordeaux. Vou para a cozinha. Faço uma sande de queijo e marmelada. É mesmo bom. O leite é morno. Não posso voltar a ficar doente da garganta. Começo a ficar impaciente. Preparo o sumo para o rapaz. Ela leva-lhe o sumo. Apetece-me ir andando. Vou. O elevador chega rápido. O elevador desce como é hábito. Não encontro ninguém. Tiro o carro da garagem. O comando precisa de pilha. Mas ainda abre o portão. Paro à entrada do prédio. Aguardo. Mudo da Antena 1 para a M80. Mudo para a Star FM Valongo. Aguardo. Mudo para a Rádio Nova. A minha rádio jazz. Eles entram no carro. O trânsito está fluído. Abrando junto à António Sérgio. Dois irmãos gémeos. Tanta serenidade. Dois namorados de mão dada. Tanta ansiedade. Raparigas a fumar. Tanto exibicionismo. Rapazes com o cabelo penteado para a frente. Rapazes a abanarem a cabeça. Tanto exibicionismo. Todos com telemóvel. Sem excepção. Mudo para a Antena 1. Ainda não dá a revista da imprensa. Mudo para a M80. Passo os semáforos. Outros semáforos. Outros semáforos. Paro para eles saírem. Ele dá-me um beijo. Húmido e quente. Sabe bem. Ela insiste em acompanhá-lo até à porta do colégio. Paciência. Aguardo por ela. Mudo para a Antena 1. Ela chega. Seguimos. Ouço a revista de imprensa de João Paulo Guerra. Paro para ela sair. Sigo. Mudo para a TSF. Ouço o noticiário das 8h 30m. Aproximo-me da ponte. Tenho cuidado na curva. Abrando. Há fila. Avisto um mamarracho. Depois a Pousada do Porto. A seguir outro mamarracho. Pior é impossível. Ao meu lado segue uma rapariga. Rosto triangular e coração. Vai numa carrinha. Elas gostam de carrinhas. E de jipes. E de minis. E de Smarts. A rapariga põe-se a maquilhar. Pinta os olhos. Passa o batom. Os carros avançam. A rapariga é despachada. Desaparece. O rio está baço. São as águas de Março fechando o Inverno[1]. A encosta do freixo já não tem outdoors. Paisagem limpa. Natural. Estado de alma[2]. Sem ruído. Mas vejo ruído. Um muro com grafite. Detesto grafites. Que pena! Estou mais para lá do que para cá. A ETAR tem a relva cortadinha. Não cheira mal. Só à noite. Deixo a A20. Estou quase. Tenho cuidado com a rampa. Procuro o meu lugar. Gosto de possuir. Estou a possuí-lo. Paro. Desligo o motor. Passo a língua nos lábios. Não me sabe a nada. Mas os lábios estão pegajosos. Aperto os lábios. Colam-se um ao outro. O que têm os lábios? Já sei. É o batom dela. Do beijo dela. Do beijo que me esqueci de registar. Se não fosse o batom onde estaria a lembrança do beijo? O batom nos meus lábios é a prova da existência do beijo. Não o posso negar. Por causa do batom lembro o beijo e por causa do beijo lembro-me dela. Recordo-a. Da sua saída. Dela a passar à frente do carro. Na passadeira. A sorrir. A dizer adeus. Penso nela. Agora sabe-me bem o batom. Saio. Fecho o carro. Acordo para a realidade. Outra realidade. Assumo a pose de advogado. Penso como um advogado. Digo de mim para mim:

- Quem me visse parado dentro do carro a lamber os lábios ir-me-ia surpreender em flagrante deleite[3].(cfr: artigo 256.º do Código de Processo Penal)


Publicado in Histórias mal contadas 


[1] Adaptação de um verso da canção de Tom Jobim Águas de Março.

[2] Cfr: definição de paisagem por Miguel Torga in Portugal, 7.ª edição, Publicações Dom Quixote, página 14.

[3] Em 1929, Fernando Pessoa enviou a Ophelia Queiroz uma fotografia em que aparece a beber vinho na adega de Abel Pereira da Fonseca. Na fotografia escreve a seguinte inscrição: «Fernando Pessoa em flagrante delitro» (cfr: http://cafedassextas.blogspot.com). Trocadilhos. Qual deles o melhor?