Naquela quinta-feira, ao acordar, olhei a manhã e disse para comigo:
- Vem, leva-me em teus braços e entrega-me à tarde![1]
Assim foi. Saí de casa sob um céu de chumbo[2] e fui trabalhar conduzido pela manhã. Ainda houve tempo para chover e sentir aquele aroma de terra aspergida.
Às voltas com um recurso de apelação, assim andei entre os caminhos da jurisprudência e da doutrina, até ser interceptado pelo meio-dia que me guiou de novo a casa.
A tarde recomeçou com a labuta do expediente. A coisa tinha de ser bem esclarecida e exigia tempo e confronto de documentos. A sentença era lida e relida a pente fino. E as contradições e omissões lá iam ficando presas entre os dentes da leitura.
Entretanto o meu colega comenta que o tempo tinha aberto. Era um bom pronuncio para o fim-de-semana prolongado e santo que se avizinhava.
E tinha razão. Quando olhei o céu viam-se as nuvens a dispersar para gáudio dos corvos marinhos que se banhavam no rio. Fiquei, assim, enternecido a assistir àquela revelação da tarde. O sol chegara para contentamento de todos nós.
Às tantas, de tanto contemplar o rio pareceu-me ver reflectido nas águas uma luz que se acendia e apagava de modo breve. Parecia uma estrela que piscava só para mim.
Eu sabia que as estrelas viviam ao colo dos rios. Também sabia que de dia dormiam de olhos abertos, arpoados por centelhas de prata flutuante[3]. Mas custava-me crer que aquela faísca fosse uma saudação. Era uma ilusão. Só podia!
Dei o assunto por encerrado e, em pleno lusco-fusco, conclui as alegações - na verdadeira acepção da palavra[4]. Saí e voltei a saborear o perfume da Primavera que se encontrava suspenso no ar.
Depois do jantar estava agendada a missa do lava-pés. Este ano ia-mos os quatro à capela junto aos terrenos da antiga seca do bacalhau, em Lavadores, Canidelo.
Quando chegámos a celebração religiosa já decorria. Ficámos à entrada, de pé. O interior estava repleto de fiéis compenetrados a ouvirem a palavra de Deus escrita pelos homens.
A homilia, ao contrário do habitual, foi muito pedagógica e esclarecedora. De seguida o padre lavou os pés a alguns presentes que estavam sentados nos extremos dos bancos. Explicou que naquele dia, em vez de se rezar o credo, se lavariam os pés.
Em pleno altar prosseguiu com a cerimónia e recordou que no ano passado havia lavado os pés à Mariana, uma menina de oito anos que acabaria por morrer dias depois, de modo repentino[5]. Mais disse, que desta vez tinha lavado os pés ao seu pai. Reconheceu que os pais tinham muitas saudades dela, mas que ela estava feliz. Concluiu.
Como era previsível, aquelas alegações fizeram despertar a comoção na capela e a avó não resistiu. Aflita e sufocada, chamou pela Mariana, sendo depois amparada pelos parentes.
Por solidariedade, as outras mulheres, que se encontravam espalhadas indistintamente entre os bancos paralelos, também se comoveram. Como uma onda, as mãos eram levadas ao rosto para recolher as lágrimas que caíam. A mulher que estava a meu lado, também entrou na onda. Eu resisti. Mas passei a ver tudo baço e desfocado.
Entretanto, o coro canta "HOSSANA NAS ALTURAS" da maneira mais profunda e comovente que alguma vez tinha ouvido. Nesse preciso momento ouve-se uma grande descarga de água. Começa a chover torrencialmente. As portas da capela, deixadas completamente abertas para permitir a assistência do exterior, deixam passar aquele som revoltoso, persistente e inesperado.
De imediato pensei, e creio que não fui o único:
- É a Mariana com saudades dos pais.
Meu Deus! era ela que chorava compulsivamente. Não tinha resistido ao sofrimento dos pais e familiares.
Como veio, como foi. A chuva parou repentinamente e na sala fez-se ouvir o sacerdote. Continuei perturbado e até ao fim, que chegou sem contar, não deixei de pensar na menina.
Fui dos primeiros a abandonar o templo e a primeira coisa que fiz foi erguer os olhos no sentido do céu. As nuvens iam-se afastando e por detrás daquela cortina vaporosa revelava-se uma negrura polida. E, então, pude ver uma estrela a cintilar. Era a estrela da tarde. Reconhecia-a. Era aquela que me tinha acenado do leito do rio.
Naquele lugar, sobre a capela, só poderia ser a... Não. Não tinha sido ilusão.
Reunidos os quatro, seguimos as setas obrigatórias rumo ao Atlântico e, em linha recta, aproximamo-nos das rochas suadas. No final da cruz, olhamos o Porto e depois Matosinhos e vimos três luzes intermitentes. Três sinais de aviso de terra. Três guias nocturnos aos navegantes. Cumpri as orientações e virei à esquerda de volta a casa.
Durante a viagem de regresso vínhamos todos ausentes. Não falo pelos outros três, mas eu vinha convicto que havia visto a Mariana e que tinha vivenciado a sua dor.
Assim adormeci. Para sempre.
Revisto em 14, 15 e 16 de outubro de 2012.
[1] Adaptação do poema com o título “Ao acordar” de César Augusto Romão, in Tanto ar, Propagare, página 12.
[2] Metáfora colhida na crista de uma onda de papel bíblia do imenso livro Rosa do Mundo, 2001 Poemas para o futuro, da Assírio & Alvim, a páginas 1435, onde navega a “A máquina do mundo” de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987).
[3] Adaptação do poema com o título “As estrelas” de César Augusto Romão, in Tanto ar, Propagare, página 13.
[4] De acordo com o n.º 1, do artigo 685.º-A do Código de Processo Civil o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.
[5] A oportunidade da referência à morte da Mariana durante a liturgia é um facto que aqui não comento. Mas o meu silêncio não vale como declaração (positiva ou negativa), pois não há lei, uso ou convenção que assim o determine. (cfr: artigo 218.º do Código Civil)