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Histórias mal contadas

São factos do quotidiano, aparentemente sem qualquer importância, aos quais o autor dá a relevância do absoluto, do todo. É a sua obra-prima, sem prejuízo de outro entendimento.

Histórias mal contadas

São factos do quotidiano, aparentemente sem qualquer importância, aos quais o autor dá a relevância do absoluto, do todo. É a sua obra-prima, sem prejuízo de outro entendimento.

24.Ago.11

De escala

 

Logo que terminou a minha diligência judicial, em Penafiel, liguei-lhe para saber como estava. Lembro-me perfeitamente. Eu vinha a falar ao telemóvel na avenida principal, do lado oposto às epígrafes de Urbano Tavares Rodrigues. Tudo estava a correr bem, mas, disse-me ela, precipitada, tinha de desligar porque no outro telemóvel estava a receber uma chamada, muito provavelmente do tribunal, pois naquele dia estava de escala.


Assim seria.


Por mim, não pensei mais no assunto. Fiz a viagem de regresso com as mãos no volante, os olhos na plataforma da estrada e a cabeça no expediente que me aguardava no escritório.


Ao fim da tarde, quando íamos os três no carro para casa, na ocasião de pormos a conversa em dia, voltamos a falar da referida escala.


Eu fiz-me de ouvidor, enquanto o rapaz assumiu o papel de perguntador. Queria saber tudo sobre a convocatória da mãe para acompanhar o oficioso no tribunal. E, tim tim por tim tim, ela foi desenrolando os meandros daquela aventura judicial, com algumas interrupções para que ele pudesse ser devidamente esclarecido quanto ao modus operandi do processo. Ficou a perceber um pouco mais da legis artis da progenitora, mas sempre com novas interrogações.


Porém o dia não chegava para tudo e a conversa pedagógica cessou com a entrada na garagem colectiva.

 

Ainda dentro do automóvel, agora dirigindo-se também a mim, ela rematou o assunto com uma revelação, a qual foi precedida de um certo ênfase. Ficamos os dois curiosos. E ela prosseguiu emocionada.


Ao que parece, ou melhor, segundo o que nos informou, pois aqui o que parece é[1], estava presente no tribunal uma familiar do oficioso. Depois de concluído o serviço (com sucesso, pelos vistos), a senhora ter-lhe-á confidenciado:


- A senhora doutora não sabe o que rezei durante toda a noite para que aparecesse uma advogada como a senhora!? – e rematou – E fui atendida. Graças a Deus!


A reboque da citação pareceu-me ver os olhos dela a brilhar, mas fiz de conta, para não entornar a comoção. Saí do carro e fui abrir o portão da garagem individual.


Quando subíamos no elevador e estávamos todos mais relaxados, não pude conter a minha admiração adiada para aquele momento ascendente (que ainda hoje julgo ter sido o mais oportuno), e questionei:


- Quer dizer, então, que também estavas de escala lá em cima?


Bom, o resto não conto, pois ficou furiosa, como se eu estivesse a duvidar da versão dela, quer dizer, da senhora.


Atualizado em 27 de novembro de 2012.


[1] É como na política ou será como na religião?

 

 

21.Ago.11

O irmão


Fui buscá-la ao escritório no final do dia e dei-lhe boleia até ao parque de estacionamento do Seminário de “Cristo Rei”. Durante a boleia foi-me contando que tinham estado a cortar as ervas do pavimento do parque e que lhe haviam pedido para deixar o veículo em local diferente do habitual, o que fez.


Chegados ao interior do Seminário, parei junto ao carro dela e apercebi-me, imediatamente, que o vidro da frente do lado do acompanhante estava partido, mais propriamente: todo estilhaçado.


Ficamos ambos perturbados (ela mais do que eu, para ser sincero), e logo arranjei uma explicação para o sucedido: não tinha sido um acto de vandalismo ou de furto, pois o rádio estava intacto e não havia sinais do interior ter sido devassado, pelo que só poderia resultar dos trabalhos do corte da vegetação do logradouro.


E, nisto, vemos ao longe o responsável pela limpeza do parque que nos saudou e veio ao nosso encontro. Pude então reconhecê-lo como um dos ministros extraordinários da comunhão que, com muita frequência, nos acompanhava nas cerimónias religiosas em que participávamos na igreja de “Cristo Rei”.


Soubemos, depois, contado por ele, que foi surpreendido com a quebra do vidro enquanto passava a máquina de fio de corte sobre as ervas enraizadas nas juntas dos paralelepípedos. Não se apercebeu do embate de qualquer pedra no vidro, mas assumia a culpa do incidente, por uma questão de nexo causal, argumentou.


Como eu já tinha deduzido inicialmente, uma pedra do chão teria sido projectada pelos fios de corte da máquina contra o vidro do carro.

Estava tudo explicado, esclarecido e mais que visto. O que não tem remédio remediado está, pensei. Havia que esquecer o incidente e actuar.


Por isso, contactei, via telemóvel, uma empresa de substituição de vidros que constava da carta verde e logo ali ficou decidido apresentar, no dia seguinte, o veículo na oficina.


Esquecidas as culpas, muito atenuadas ou mesmo excluídas, atenta a gratuitidade do estacionamento, ficou combinado informá-lo dos futuros acontecimentos, em especial se o seguro incluí-a o pagamento de quebra de vidros que, naquele momento, ignorávamos.


À despedida quisemos saber como se chamava e o nome, com a mesma naturalidade com que estendia a mão para nos cumprimentar, não se fez esperar:


- Irmão Ribeiro.


Surpreendidos com a denominação, nada dissemos, nem revelamos estranheza.


Em casa, conversamos e decidimos que, independentemente do seguro pagar ou não a substituição, nós iríamos assumir o custo da mesma, tanto mais que tínhamos acabado de ganhar um irmão.


Ficava tudo em família, concluímos.