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Histórias mal contadas

São factos do quotidiano, aparentemente sem qualquer importância, aos quais o autor dá a relevância do absoluto, do todo. É a sua obra-prima, sem prejuízo de outro entendimento.

Histórias mal contadas

São factos do quotidiano, aparentemente sem qualquer importância, aos quais o autor dá a relevância do absoluto, do todo. É a sua obra-prima, sem prejuízo de outro entendimento.

04.Set.11

Amo-te Liliana

 

No fim da leitura do conto Liliana, inserto n “A Fábrica da Noite” de Cláudia Clemente, fiquei com uma sensação do tipo murro no estômago, muito em voga no linguajar português, em especial no mundo político e jornalístico. Tive falta de ar, seguida de uma dor profunda, tão profundo foi o impacte do murro.

 

Tinha lido vários contos de Cláudia Clemente, mas aquele marcou-me por muito tempo. Sempre que o vazio de ideias ameaçava aparecer, saltava-me para a mente, como se fosse uma mola, a história adulterada de Liliana. Se conduzia numa longa reta e não tinha preocupações de grande monta, pensava nela por momentos. O mesmo sucedia em casa e depois, com mais frequência, em férias.

 

Havia motivos.

 

Saiba o leitor que aquela conta, como diria A. M. Pires Cabral, baseia-se em fundamentos inverídicos, para não dizer falsos, pois é uma palavra muito forte (apesar de já dita). Não digo isto de ânimo leve, como quem atira uma atoarda a ver se cola. Afirmo por conhecimento próprio. Daí a dor imensa do soco que quase me perfurava a barriga, mesmo por cima do umbigo.

 

A história, verdade verdadinha, contada pelos seus protagonistas, sucedeu como a seguir se descreve e no melhor português que sei escrever, mas o suficiente para desmentir a Cláudia.

 

Vamos então, antes de mais, enquadrar o momento e o local em que soube, por boca própria, os contornos de tão encantador relato dos antecedentes de uma relação amorosa em vias de se consagrar no altar de uma igreja sita nos arredores do Porto.

 

Eu e a minha mulher integramos o Centro de Preparação para o Matrimónio (CPM), na vigararia de Vila Nova de Gaia. De tempos a tempos, somos convocados (creio que é o termo correcto), para reunir, acompanhados de outro casal mais experiente, com noivos que pretendem contrair matrimónio pela igreja. Em várias sessões, no mínimo cinco, encontramo-nos na paróquia de Mafamude com os candidatos ao estado de casado, na dificílima, digo, grandiosa, minto, na exigente tarefa de os ajudar a solidificar o seu amor à luz dos princípios da fé católica.

 

Conheci a Luísa Ana e o João Pedro num desses cursos. Seria no de Maio? Não tenho a certeza, pois acabo invariavelmente por confundir os noivos, quando não raras vezes os acasalo erradamente, salvo seja, junto temporariamente um noivo com a noiva de outro noivo (vá se lá saber porquê).

 

Apareceram ambos sorridentes e de mão dada. Pareciam dois namorados muito sequiosos do seu amor. Das cadeiras espalhadas na sala, em forma de meia-lua, escolheram as centrais, mais por vontade dela do que por ele, que ficou tentado a sentar-se nas do canto. Vinham ambos de calça de ganga e de camisa (agora já me lembro: foi no mês de Maio). A dela tinha uns bordados nas mangas. A dele tinha um padrão aos quadrados azuis muito miudinhos. Percebia-se, à distância, que eram educados e inteligentes.

 

Ele era alto, magro e moreno. O cabelo castanho e liso estava dividido do lado esquerdo, dele, por uma linha bem saliente. Não queria, mas notava-se que era tímido e, em certos momentos, nervoso. Deleitava-se a ouvir e a ver a noiva a falar.

 

A rapariga, mais baixa, também era magra e morena. Contrastava, contudo, quanto ao comportamento. Muito divertida e faladora, mais para o tagarela - tipo feminino bem vincado -, estava constantemente a mexer nos longos cabelos castanho-escuros e ondulados, partidos ao meio em ziguezague.

 

Falava com prazer, torcendo, às vezes, os lábios carnudos em sinal de mimo. Uma menina mimada com certeza!

 

Era ela que tomava a iniciativa, pelo menos ali.

 

Narrou por vontade própria, antecipando as dicas dos animadores, os motivos que os tinham levado àquelas sessões. Num ápice, sem que nos déssemos conta, passou a manipular o grupo e a falar sofregamente do início do namoro. Teve de ser contida. Em termos técnicos: teve de ser interrompida, é claro!

 

Outro casal de noivos, que não deixou passar a oportunidade, interveio a relatar a sua experiência. Entretanto, a Luísa Ana foi-se aproximando mais do João Pedro, encostou a cabeça ao seu ombro e com a mão direita livre, porque a esquerda dela dava-se à direita dele, acariciou o braço direito dele. Trocaram olhares cúmplices e lânguidos. A história estava prestes a desenrolar-se. O tempo urgia e nós estávamos todos ansiosos por conhecer tão empolgante encontro.

 

Depois de ouvidas várias versões, concedemos a palavra ao João Pedro para quebrar o seu silêncio.

 

E ele então falou e disse:

- Durante a nossa infância e a adolescência vivíamos um em frente ao outro. Eu, num prédio já antigo e apertado entre outros tantos. A Luísa Ana habitava um palacete herdado dos avós, com um muro alto a esconder um jardim denso e envelhecido. Era a menina rica da rua. Não se dava connosco, nem com outros miúdos que se visse. Ou passeava no jardim depois das aulas ou lia, ininterruptamente, à noite.

 

Neste momento, a noiva, com ar malandro, acrescentou:

- Fingia! – e prosseguiu – Para dizer a verdade, desde que me conheço que sentia um fraquinho pelo João Pedro. A única maneira de chamar a sua atenção foi fazer de conta que lia durante a noite. Lia com as persianas de madeira abertas. Ele não podia ignorar a minha presença. Alguma vez haveria de reparar em mim. E reparou!

 

Depois daquela descrição, a curiosidade era mais que muita e não pude evitar um comentário/interrogação:

- Então vocês os dois durante todo esse tempo não se falaram?

- É verdade! Eu não falava com ninguém da rua e o João Pedro também nunca me procurou. Amamo-nos em segredo ao longo da nossa infância e adolescência.

 

A afirmação, além de ser muito emotiva e piegas, era genuína. E a rapariga dizia-o com orgulho. Por sua vez, o rapaz assentiu com uma expressão cheia de ternura ao olhar meigo que ela lhe dirigiu.

 

Chegados a este ponto, estávamos todos reféns da restante fase pré-namoro. Quer os animadores, onde eu me incluía, quer os outros noivos, queríamos agora saber, afinal, como é que aqueles dois atados se teriam decidido a falar, porque o namorar, estava mais que visto, iria acontecer lá para as calendas gregas.

 

Os dois não se fizeram rogados e toca de retomar o enredo, suspenso por aquele cruzar de olhares apaixonados, os deles, e expectantes, os nossos.

 

- Ela não está a contar tudo. Eu ainda tentei chegar à fala com ela. Quis saber onde estudava, por sinal um colégio de freiras, sempre vigiada pelos funcionários e entregue e recolhida pelos pais. Até que uma rapariga lá da rua, uma tal Cláudia Clemente, gabou-se de se dar com aquela gente e de conhecer um primo da Luísa Ana. Viu-me assim muito caidinho pela nossa vizinha (era do domínio público) e, como benemérita, segredou-me que se chamava Liliana. Deve ter sido para gozar. Só pode! Não tive mais nada. Como andava na fase do desespero, nessa mesma noite, escrevi ao longo do muro do seu jardim “AMO-TE LILIANA” nas letras maiores que fui capaz de desenhar.

 

Risota total. O grupo descompôs-se. Os visados, com cara de caso, assistiam à descompressão daquele momento. Todos falavam com todos. Comentavam a inocência dele, o espanto dela e a brincadeira da outra, a amiga do primo, como se estava a ver.

 

Luísa Ana, não Liliana, não achou graça nenhuma, pois aquele incidente foi muito doloroso, uma vez que tinha assistido aos preparativos da pintura.

 

- Foi um grande desgosto de amor – balbuciou, com aquele ar de mimo, a boca torcida e o olhar fixado no chão – Passei a noite muito ansiosa para saber o que o João Pedro teria escrito no muro. Quando vejo o nome dessa Liliana, não pude acreditar. Não pude acreditar! Não era possível! Tinha descoberto que gostava de outra. Acabou-se a encenação. Nunca mais abri as persianas.

 

Ao riso de há bocado, sucedeu-se uma deceção, uma tristeza, mais nas noivas, diga-se a verdade. A situação piorava e não havia maneira deles se falarem, quanto mais iniciarem o namoro.

 

- Eu não reagi bem àquela rejeição, entre aspas (fez o gesto com os indicadores e os médios juntos das duas mãos). As persianas fechadas eram um sinal, mais do que evidente, que a Luísa Ana não correspondia ao meu sentimento. Eu fiz tudo para mostrar que era eu a escrever aquelas palavras. Ela sabia que tinha sido eu escreve-las. Se, depois disso, não se deixava mostrar, não queria que eu gostasse dela. Sempre fui muito orgulhoso. Se ela não gostava de mim, ou podia não vir a gostar, então havia que partir para outra. E assim fiz.

 

Fez uma expressão triste e prosseguiu:

- Estávamos no final do 12.º ano. Na altura das inscrições para a faculdade e, de modo a esquecer aquela perdição, escolhi o curso de engenharia no Instituto Superior Técnico, em Lisboa. A situação não era assim tão má. Diziam muito bem da escola e eu tinha uns familiares na capital que me podiam ajudar. Além disso, o meu pai também me queria ver longe dali, para acabar de vez com aquela obsessão pública e notória. A minha mãe ficou triste, claro!

 

- E eu ainda mais, João Pedro! – observou ela, um pouco amuada. – Por causa do meu desgosto, pois eu já não queria viver mais naquele sítio, os meus pais acabaram por vender a casa e viemos viver aqui para Gaia, junto à praia. Quando o João Pedro regressou ao Porto, nas férias do Natal, a casa já tinha sido vendida.

 

Quebrando todas as boas regras de animação de grupos, não pudemos passar ao lado desta incrível intermitência do amor. Ninguém nos iria permitir que mudássemos de assunto. Ninguém aceitaria a vez para falar. Por isso, havia que prosseguir. O tempo escoava-se e o reencontro era aguardado.

 

- Bem, agora, todos querem saber como nos reencontramos, ou melhor, como nos encontramos, pois até aí ainda não nos tínhamos conhecido, era tudo platónico – esclareceu João Pedro.

 

- Mas antes desse dia lindo, inesquecível, muitos dias, semanas, meses e anos passaram. Toda a gente me dizia que tudo não passava de uma paixão da adolescência, passageira e fugaz. Mas quanto a mim, eu falo por mim, era algo mais sério, e também por ti, não é João Pedro? – questionou a rapariga.

 

Da parte dele, viu-se um olhar de anuência e resignação àquela certeza. Ficou-se por ali.

 

- Posso dizer – prosseguiu ela – (não é segredo nenhum), que ainda tentei namorar com outros rapazes, mas acabavam todos por ter sempre muitos defeitos. Não se pareciam nada com o meu príncipe encantado. Eram desilusões atrás de desilusões.

 

- Por mim, reconheço que ainda consegui namorar com uma rapariga, por sinal aquela que me enganou no nome da Luísa Ana. É verdade! Acabei por namorar com a Cláudia quando foi estudar cinema para Lisboa. Estávamos os dois muito sozinhos, muito distantes de casa, desamparados. Enfim, muito carentes. Mas eu sentia como que um complexo de culpa quando estava com a Cláudia, parecia que estava a trair a Luísa Ana. Explicando melhor: a minha mulher ideal que até àquela data era encarnada pela Luísa Ana. Foi uma relação fortuita. – concluiu o noivo com uma cara desgostosa e a fitar o chão com vergonha.

 

Uma noiva mais atrevida, farta daquelas deambulações sentimentais, foi direta ao assunto e questionou, para nosso alívio, quando é que, afinal, se deu o reencontro ou encontro, como se queira chamar.

 

- Foi num sábado de manhã, num centro comercial, em Matosinhos, que voltei a vê-la. Já deviam ter passado uns dez anos. Para vossa informação, foi como antes, como se nada tivesse mudado. Voltei a sentir as pernas a tremer. Fiquei durante poucos segundos a enxergar o vazio e a recordar.

 

Chegados a este ponto, diria ponto-rebuçado, os olhos das noivas arregalaram-se e os pescoços esticaram-se ainda mais para tentar avistar de frente os palestrantes. Os rapazes e homens, é que alguns já eram entradotes, mantinham-se incrédulos e refastelados nas cadeiras, até um pouco incomodados com a curiosidade das respetivas.

 

Nós, os orientadores do curso, estávamos a gostar e não víamos a maneira de descobrir o fim à história.

 

- A ti, João Pedro, tremeram-te as pernas. A mim, faltou-me o ar. Tal como antes. Mas não queiram saber a felicidade que senti. Parecia que uma nova vida iria começar. Mas não fui capaz de me aproximar. Como estávamos numa livraria, sentei-me de imediato num sofá ao calha, a fingir que lia (já tinha muita prática). Não pude contudo evitar vários relances para saber para onde é que ele ia, e como estava. Tão lindo que estava! Ainda hoje consigo descrever a roupa toda que vestia. Até que, ao contrário do que pretendia a Cláudia, ele decidiu vir ter comigo. Agora não conto mais, não sou capaz. Choro sempre.

 

Todos, de uma só vez, olharam ansiosos o João Pedro. Até os noivos. Digo com propriedade, até os noivos queriam saber como o parceiro reconquistou a rapariga.

 

- Eu também fico um bocado emocionado, mas aguento-me. Como ela dizia, eu cheguei-me ao pé dela. Foi um impulso, uma coisa mais forte que eu. Assim sem pensar. Zás. Não podia perder aquela oportunidade. Imaginei aquele momento milhares de vezes. Corri todos os centros comerciais em que havia livrarias, pequenas ou grandes, com a certeza absoluta que um dia a haveria de encontrar, solteira, casada ou divorciada, quem sabe. Mas haveria de a encontrar. Eu tinha a certeza. Como ela era maluca por livros, supunha eu, teria de os ir procurar naqueles sítios. E o momento chegou. Sentei-me ao pé dela e quando nos olhamos de frente só disse…

 

A rapariga não resistiu e chorou leve, levezinho, como quem quer passar despercebida. De olhar pregado no chão, foi limpando, com os dedos longos e delicados, as lágrimas que caiam. Umas vezes, com os dedos da mão direita, outras vezes, com os dedos da mão esquerda. Para o final, com os dedos das duas mãos. Uma ou outra rapariga também se emocionou.

 

- …só disse «AMO-TE LILIANA».[1]

 

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Ver a versão de “Liliana” de Cláudia Clemente, in “Fábrica da Noite”, página 51, Ulisseia in http://www.revistapessoa.com/artigo.php?id=81

 

Depois de lida a versão de Cláudia Clemente poderá o leitor, agora, compreender melhor até onde pode ir a fantasia feminina quando está em causa a disputa do parceiro sexual.

 

V. N. de Gaia, Armação de Pêra e Castelo de Vide, Verão de 2011.

 


[1] A história acaba aqui. A declaração de amor coincide com a entrada na sala do Padre Emanuel Brandão para nos questionar sobre o atraso no desfecho da primeira sessão. Naquele momento não tive oportunidade de o esclarecer, o que faço agora e aqui de modo pormenorizado.

 

Revisto em 11 de novembro de 2012.