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Histórias mal contadas

São factos do quotidiano, aparentemente sem qualquer importância, aos quais o autor dá a relevância do absoluto, do todo. É a sua obra-prima, sem prejuízo de outro entendimento.

Histórias mal contadas

São factos do quotidiano, aparentemente sem qualquer importância, aos quais o autor dá a relevância do absoluto, do todo. É a sua obra-prima, sem prejuízo de outro entendimento.

26.Dez.11

Lavínia, na cidade dos sonhos perdidos

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A ESCRITA: Lê-se como se estivesse a ouvir uma conversa de mulheres. Os pormenores relativos às personagens femininas, em especial, da roupa que as mulheres e meninas vestiam, só podiam ser descritos por quem domina o assunto. Há situações que remetem para sentimentos (hipocrisia, ciúme, humilhação) cujo faro apurado das senhoras deteta à distância. A título de exemplo a passagem a fls. 113: “Lavínia mostrava-se sempre muito feliz, como se tivesse acabado de descer do paraíso, e beijava o marido com carinho, fazia-lhe festinhas na mão, soltava pequenas risadinhas de cumplicidade que irritavam Maria, porque pressentia naquela ternura uma encenação que lhe era dedicada.”

 

A preocupação fundamental de quem conta as peripécias da vida de Lavínia e afins é a comunicação de factos sem subterfúgios ou floreados. Factos são factos. A forma aqui é reduzida às boas regras do português. (deformação profissional?) E basta. A primeira frase é exemplificativa: “Lavínia nasceu em Chaves, em 1915.

 

Uma composição com nota máxima.

 

A CASA DE BONECAS: Não sei de onde é que nasceu esta ideia da casa perfeita, de uma arquitetura romântica. Será que teve origem na obra de Raul Lino? A autora admite que sim. Por isso, constrói com o mestre de obras, os pedreiros e trolhas, todos vindos de Gemunde, uma moradia branca que Lavínia, segurando com ternura as mãos de Luciano, descreveu ao pormenor. (cfr: fls. 98 e 99)

 

Estes ninhos de felicidade podem ser encontrados em diversos locais do Porto (com predominância na Foz e Antas) e noutras cidades dos arredores. São o testemunho de uma época que a autora conjugou na perfeição com o percurso da família de Madalena e filha.

 

O CASTIGO DE RODRIGO JACINTO: É a ponta do vértice formado pela linha do gráfico que mede o poder social e profissional de Lavínia. O fim da ascensão e o princípio da decadência. A profecia da mãe do Rodrigo ir-se-á concretizar em toda a sua plenitude: “Eu o amaldiçoo para que não deixe semente e se a deixar que seja daninha!

 

Mas antes, a criança será alvo de um sacrifício patrocinado por Lavínia e cujo carrasco é precisamente, sim, precisamente, o morcão do pai daquela. (página 110) É o parágrafo mais realista e cruel do romance. As ameaças e investidas de Madalena (neta da professora) sobre a tia (Virgínia) nunca superarão aquele momento. (página 228 e segs).

 

REDENÇÃO: No final da história, Virgínia, uma das sobreviventes de um tipo de educação que sobrevalorizou o ter ao ser, a aparência à transparência, descobre a existência do outro (das classes sociais baixas) em pé de igualdade, à sua altura. Até àquela ocasião, o outro (encarnado por Rodrigo) era visto numa perspectiva diferente, mas para pior, como um ser inferior.

 

Ali, no quarto, (página 243) Rodrigo e Virgínia unem-se, vontade e corpo, para se libertarem do medo que os acossava há tanto tempo, tempo demais, mas a tempo da redenção.

 

O abraço dado àquelas duas almas por Maria Alzira Cabral revela que acredita na tocante e imperfeita humanidade de cada um de nós.

 

Um livro para reler e reler.

 

Vila Nova de Gaia, 25 de Dezembro de 2011