Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Histórias mal contadas

São factos do quotidiano, aparentemente sem qualquer importância, aos quais o autor dá a relevância do absoluto, do todo. É a sua obra-prima, sem prejuízo de outro entendimento.

Histórias mal contadas

São factos do quotidiano, aparentemente sem qualquer importância, aos quais o autor dá a relevância do absoluto, do todo. É a sua obra-prima, sem prejuízo de outro entendimento.

06.Mai.12

O Achador

 

 

É verdade! Desde, pelo menos, 21 de março de 2012 que passei a ser designado pela Federação Portuguesa de Columbofilia como o “ACHADOR”

 

A história é simples e conta-se em duas penadas.

 

Ela já se tinha apercebido, no domingo, que um pombo andava no terraço, mas só me contou o insólito à hora do jantar da segunda-feira seguinte.

 

Quis então saber do pombo e do motivo daquele apego ao nosso terraço. A razão parecia óbvia: o tempo no domingo tinha estado muito nebuloso e provavelmente o pombo-correio (vi uma anilha em cada uma das patas) ter-se-ia desorientado na viagem (o termo apropriado será concurso) de regresso a casa e, exausto, escolheu aquele lugar para recuperar as forças perdidas.

 

Fazendo uso das minhas competências de filho de columbófilo, decidi ajudar o pombo naquela recuperação, dando-lhe, de imediato, sementes e água.

 

No outro dia, terça-feira, a minha vontade era capturá-lo. Depois do jantar, em plena noite, fui-me aproximando de mansinho da ave e quando já me encontrava bem perto dela, diria a um palmo, o pombo levanta voo, de modo esforçado e atabalhoado, embatendo nas paredes e acabando por pousar no varão da varanda do apartamento do edifício contíguo ao nosso.

 

Que frustração! Ele ali ao meu lado (um metro), eu com a culpa toda daquela precipitação e o animal fatigado e em situação de perigo.

 

Entrei na cozinha triste e pesaroso. Contei o sucedido e ambos, ela e o rapaz, disseram simplesmente:

- Paciência!

 

Mas eu não podia ficar por ali. Tinha de ir mais longe. Não aguentava aquela culpa toda. Sentia que era capaz de fazer melhor.

 

Pedi-lhe então que telefonasse à mãe do colega do rapaz, que viviam na outra entrada, para nos permitir o acesso ao prédio e assim contactar com o proprietário da varanda.

 

E assim se fez.

 

Toquei à campainha do apartamento colado ao nosso e expliquei a situação à moradora. Ela compreendeu e deixou que eu fosse à varanda confirmar a presença do pombo.

 

Lá estava ele de olhar muito assustado e perdido.

 

Era agora ou nunca.

 

Com toda a calma do mundo (não podia falhar) fui-me aproximando outra vez do bicho aos poucos enquanto ele me mirava de cabeça irrequieta.

 

Senti que não tinha escapatória, ou melhor, forças para resistir àquela detenção.

 

Num lance repentino consegui apanhá-lo com alguns danos: uma pena ou duas soltaram-se.

 

Com o pombo preso entre as duas mãos e mais confiante, mostrei aos presentes aquele gesto técnico que nunca tinha esquecido. Segurei-o com uma mão só, a esquerda, apertando-lhe as patas entre o indicador e o médio, enquanto o polegar, em forma de gancheta, lhe prendia o rabo. Com a direita afaguei-lhe o papo.

 

(abro aqui um parêntesis para transcrever uns versos de Carlos Drummond de Andrade que retratam, fielmente, quer o meu gesto técnico, quer a cor do pombo-correio:

 

tomando-o no berço das mãos

e brandamente alisa-lhe

a medrosa plumagem azulcinza

cinza de fundos neutros de Mondrian

azul de abril pensando maio. 

 

fecho parêntesis com a sensação Déjà vu)

 

Estava redimido.

 

Em casa, com os dois à minha volta surpreendidos com a façanha, tirámos o número de uma das anilhas e soltei-o na lavandaria. Voltámos a dar-lhe mais sementes e água.

 

De seguida teria de cumprir o meu dever legal (artigo 1323.º do Código Civil) e moral (o pombo não me pertencia) e conjugal (não podia deixar que o pombo estivesse muito tempo na lavandaria a impedir o normal funcionamento das atividades domésticas).

 

Por isso, via internet, comuniquei à Federação Portuguesa de Columbofilia o achado.

 

No campo reservado às observações escrevi:

Tomei posse do pombo-correio hoje, pelas 22 horas, que se encontrava à solta no meu terraço desde o dia 18 (domingo), com muitas dificuldades em voar.”

 

Dormi descansado.

 

Durante a manhã do dia seguinte (quarta-feira) recebi uma chamada da FPC a acusar a receção do email e com a seguinte pergunta:

- Pode guardar o pombo durante uns dias até ser reclamado pelo dono?

 

Respondi de modo afirmativo e muito compreensivo perante a situação do animal, bem como do seu proprietário que, supunha, deveria estar aflito com a sua perda.

 

Lembrei-me então de telefonar ao meu pai para ver se tinha um lugar (casulo) livre para o pombo perdido.

 

Respondeu-me que não e que, além disso (talvez fosse a razão mais ponderosa), os outros estavam em competição e não podiam ser perturbados com a presença de um estranho.

 

Em competição?!

 

Isto da columbofilia era de facto uma coisa muito séria.

 

Na quinta-feira chega-me, via CTT, uma carta dirigida ao ACHADOR, com o assunto: Comunicação de pombos e com a identificação do proprietário sito em PORTELA SUSÃ.

 

 

 

Era só aguardar pela reclamação ou contactar o dono, ou, se ficasse frustrada a entrega (silêncio do proprietário), libertá-lo.

 

No sábado de manhã, aí pelas onze horas, preparava-me para telefonar ao proprietário quando recebi uma chamada daquele a identificar-se, a descrever o pombo, a agradecer a recolha e a sugerir-me para o soltar, pois, era sua convicção, o mesmo, desta vez, chegaria a casa.

 

Naquele dia o céu estava completamente limpo. Não havia, por isso, impedimentos meteorológicos à viagem ainda longa (Viana do Castelo) que o pombo tinha de fazer.

 

Com o assentimento do dono abri a porta da cozinha e da lavandaria e esperei. Então o pombo pôs-se a olhar-me de um modo interrogativo. Perante a minha passividade (fiquei muito quieto, tipo homem estátua) espreitou entre as portas e vendo o céu encerado de azul ciano voltou a deter-se em mim, a confirmar o caminho livre. Não convencido com a oportunidade, espreitou de novo entre as portas. Por fim, aflito, levantou repentinamente as asas que, ao se tocarem nas extremidades, deram um estalido, e, em slalom, desapareceu no horizonte da minha miopia.

 

Perto da hora do almoço chegaram os dois e, para minha alegria (eu também merecia), prescindiram dos meus serviços de limpeza do chão da lavandaria.

 

E pronto! Estava não só redimido o meu pecado da precipitação, como inchado o ego de cada um de nós cá da casa que, em conjunto, contribuímos para salvar o pombo.

 

Mas isto de pássaros não acaba aqui.

 

Na semana seguinte cruzei-me na entrada do elevador com a Andrea[1], a minha vizinha do recuado, e esta, muito preocupada, contava-me no seu português com sotaque brasileiro do marido e alemão da naturalidade austríaca, que havia encontrado à frente do prédio um periquito perdido. Perguntou-me se eu sabia a quem pertenceria, ao que respondi que desconhecia.

 

Durante uns dias ainda andou afixado numa das paredes da cabine do elevador um papel a comunicar o achamento do periquito (a Andrea podia não conhecer a lei portuguesa, mas as regras do bom senso são universais).

 

Há pouco tempo atrás, deparei-me com a Andrea e os filhos com uma gaiola nos braços:

- É para o nosso periquito. Se chama Luciano, sabe?! – Disse ela satisfeita.

 

Concluindo: o nosso prédio está na rota das aves perdidas e achadas.

 

Vila Nova de Gaia, 2 de maio de 2012



[1] A Andrea, o marido (Francisco Moreira) e a irmã dela (Birgit Laude) fazem parte do Sabiá Quartet. É caso para dizer: fica tudo em família.