Abri o roupeiro à procura de uma camisa. Virei, na minha direcção, uma a uma, as camisas penduradas nos cabides. À medida que as ia inspeccionando, arrastei-as, uma a uma, até ficarem todas juntas. Ainda hesitante, reparei que a penúltima tinha nas costas uma mancha de cor vermelha escura. E a mancha era recente. Não estava ali quando comecei a passar a revista. Instantaneamente, por mero instinto, olho para a mão direita e vejo o meu calo do dedo mindinho aberto e a sangrar. Não tenho outro remédio senão lavar as mãos com água estreme, secá-las e assim estancar a ferida.
Além daquele calo tenho ainda outro na mão direita. Situa-se na prega entre a falanginha e a falangeta do dedo médio. É achatado e largo. Não tenho a noção da sua idade. Talvez tenha o tempo da escrita e do desenho na minha vida.
O calo do dedo mindinho, alvo da minha atenção inesperada, é mais saliente. Está ali ancorado na dobra da falange e da falanginha, redondinho e rijo. Aguenta, em silêncio, o peso das minhas ideias e dos meus sonhos. Suporta, firme, o meu verboduto[1]. Equilibra as minhas dúvidas e reticências. Resiste aos rabiscos e sublinhados. Para ser mais específico, é o ponto de apoio sobre o qual a minha escrita, qual alavanca, tenta mover o mundo[2]. O meu mundo, convenhamos.
Em tempos, já tive calos a nascerem no princípio da tarde de sábado e a rebentarem no final do dia, espalhando a aguadilha pela palma da mão. Depois é que eram elas! Vinha a dor da fricção entre a pele esticada e a carne viva. A enxada e a cavadeira é que ficavam sempre na mesma: duras e inflexíveis.
Nos pés, os calos magoaram-me a vaidade e, às vezes, também sangraram. Isso foi aqui atrasado. Hoje são os sapatos que se adaptam aos pés. Também já não era sem tempo[3].
E a nódoa de sangue? A ver vamos.
Depois de feito o reportório dos calos continuava sem camisa, mas com a borda do calo escura e seca. De volta ao roupeiro, escolhi, como é óbvio, a camisa suja. Peguei nela com todo o cuidado e passei água fria sobre a mancha até desaparecer e diluir-se na corrente, acabando por se escoar pelo ralo do lavatório. Com o secador, a camisa ficou como nova. Imaculada.
Esqueci aquele incidente. Mas, em contrapartida, passei a lembrar mais vezes o calo do dedo mindinho. A reparar mais nele.
De quando em quando, aquela lembrança da área dura da pele que se tornou grossa e rígida como uma resposta a repetidos contactos e pressões, provocava-me a vontade de escrever, e eu, então, escrevia (como agora), logo, pressionava ainda mais o calo, que se tornava ainda mais rígido, o que me fazia pensar ainda mais nele. E assim sucessivamente. Ad infinitum.
Mas um dia, já calejado, disse:
- Basta!
E assim acabei por ficar insensível à sua presença. Deixei de o sentir. Deixei de pensar nele. Logo já não existe.
Vou ter de aguardar por novo sangramento.
Revisto em 18, 20, 21 e 22 de outubro de 2012.
[1] É o nascer de uma nova palavra por influência dos engenheiros que me rodeiam.
[2] Arquimedes descobriu o princípio da alavanca e a ele é atribuída a citação: "Dêem-me uma alavanca e um ponto de apoio e eu moverei o mundo".
[3] É uma expressão corrente na língua portuguesa. Faz parte das figuras de linguagem e consiste na afirmação de uma coisa, afirmando-se o seu contrário - esse tipo de colocação chama-se litotes.