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Histórias mal contadas

São factos do quotidiano, aparentemente sem qualquer importância, aos quais o autor dá a relevância do absoluto, do todo. É a sua obra-prima, sem prejuízo de outro entendimento.

Histórias mal contadas

São factos do quotidiano, aparentemente sem qualquer importância, aos quais o autor dá a relevância do absoluto, do todo. É a sua obra-prima, sem prejuízo de outro entendimento.

30.Set.12

Cão noturno



Fizemos um amigo especial!

 

Nós os dois, eu e o rapaz, costumamos caminhar à noite pelo centro da cidade. Vamos a tagarelar e, de onde em onde, de mãos dadas ou entrelaçados. Gosto de o sentir próximo de mim, de tocar a carne da minha carne.

 

De uma das vezes, ao passarmos junto à escola António Sérgio veio ao nosso encontro, do lado de dentro das grades, um cão rafeiro, muito bonito, de cor preta e umas manchas brancas na cabeça e no peito. Meteu o focinho entre os ferros e esperou que lhe fizéssemos festas.

 

E nós fizemos.

 

Daí em diante, sempre que passamos junto à escola ele aparece e o ritual repete-se. Começa junto ao portão com os primeiros mimos e depois acompanha-nos, de cauda a abanar, até ao extremo do Liceu. Ao longo do percurso fazemos-lhe carícias mais quatro vezes. Ele escolhe o sítio em que o pavimento está ao nível do muro de suporte e toca de meter a cabeça entre a vedação. No final, consolado com os afagos, dá meia volta e regressa determinado ao seu lugar (será de cão noturno?).

 

Para nós chama-se Sérgio.

 

É o cão nosso de cada caminhada.

 

Vila Nova de Gaia, 30 de setembro de 2012. Atualizado em 3 de fevereiro de 2013 e 9 de agosto.

27.Set.12

A nora de Deus

 

 

Cheguei a casa e contei-lhe o que havia ouvido de meu pai:


- Um vizinho tomou conta do terreno que fica em frente à casa dos meus pais. Como o homem tinha de regar a terra e a água da companhia é muito cara, foi buscar, ao balde, água à fonte pública, ali no meio dos Bacelos. Meu pai não suportou vê-lo subir a encosta carregado com os baldes para, de seguida, os despejar nos bidões e assim armazenar a água (fez-lhe recordar coisas passadas e pesadas, por certo!). Por isso, decidiu dar-lhe água do poço de furo.


Na hora de encher os bidões com a água do nosso poço, a mulher do vizinho exclamou: «… parece que foi Deus…!»


Até aqui ela ouviu e nada disse. Continuou entretida com os afazeres domésticos e de costas voltadas para a minha conversa.


Prossegui com mais algumas peripécias e acrescentei que ao sair da casa de meus pais me cruzei com o vizinho agricultor.


Neste momento ela torce o pescoço na minha direção, fixa-me o olhar e pergunta:


- E tu não lhe disseste que eras o filho de Deus?


Respondi-lhe com um sorriso contido.


Entretanto, o tempo fez o seu caminho, a água foi fazendo maravilhas e eu fiz-me esquecido.


Hoje, passados uns meses após aquele comentário, quando cheguei a casa vindo de meus pais carregado com um saco de pencas, tomates coração de boi, vagens e abobrinhas, e sem que ela tivesse tempo para gracejos, antecipei-me:


- São frutos da encosta do vale[1] para a nora de Deus!


Na troca dos frutos restituiu-me o sorriso contido que me havia extorquido à força da graça.

 

Vila Nova de Gaia, 20 de setembro de 2012.



[1] Será o paraíso?

23.Set.12

Os filhos dos mortos



Somos, efetivamente, filhos dos "mortos" que revivem e reflorescem em nós. Por isso quem não dedicar, ao menos vinte por cento da sua vida a essa "conversação com os mortos", que é a leitura, pode ficar certo de que a sua cabeça ficará deserta e a sua vida vazia.

 

José Luís Martín Descalzo in Razões para Viver, Editorail Missões Cucujães, página 181.

23.Set.12

O homem completo


(Baltasar Gracián y Morales)


Dizia Gracián que para se ser homem completo, é preciso ter três vidas e empregar a primeira a falar com os mortos (ler); a segunda, com os vivos (viajar); a terceira, consigo mesmo (refletir). Por isso, recomendava o seguinte: "Traga primeiro lendo, devora vendo e rumina meditando".

 

José Luís Martín Descalzo in Razões para Viver, Editorial Missões Cucujães, página 180.

16.Set.12

Vila Nova do Paraíso


Cada um de nós tem um conceito próprio do paraíso. Eu não fuja à regra. Devo dizer, aliás, que desde muito novo venho trabalhando para materializar esse lugar. Reconheço, no entanto, que esse lugar acaba por ser, afinal, um estado de alma. Uma paz interior que nos invade depois do dever cumprido.


Assim, o paraíso pode acontecer em qualquer lugar porque se instala na nossa mente e esta, por sua vez, sendo guiada pelo corpo está onde for preciso ou onde for necessário.


Só que há lugares que são propícios a que a dita paz interior aconteça. Dito de outra forma: há sítios que nos impõem o paraíso. Ele como que vem do exterior para o interior da mente.


É o que sucede sempre que vou a Vila Nova de Cerveira.


A entrada no vale e na foz do Lima e o consequente deslumbramento constitui a preparação para a viagem. A seguir, a ascensão pela A28 ao planalto sobranceiro a Viana do Castelo faz-nos aproximar do céu. Ficamos pouco tempo nas alturas e então descemos em direção ao rio Minho. De quando em quando avistamos ao longe o rio e as suas margens verdejantes. Quase no final da auto estrada temos uma descida acentuada e logo depois uma subida e outra descida que nos introduz na EN 13 sem interrupções ou constrangimentos, entenda-se portagem ou rotunda. Na nacional, o percurso é plano e a paisagem espraiada. Agora aparecem rotundas, mas a largueza das margens da estrada torna a condução aprazível.


Mas ainda não chegamos propriamente ao paraíso.


Ele só acontece ou impõe, como se queira, no parque de Vila Nova de Cerveira: é a relva fresca, o arvoredo, o rio sereno e o tempo ameno; são as brisas suaves; são as pessoas que passeiam ou se deitam na relva ou se sentam nos bancos, que conversam em várias línguas ou merendam, que se divertem nos equipamentos ou com a água, que, simplesmente, contemplam tudo o mais, especialmente o deslizar do rio ou a ponte para o outro país (será para o outro mundo?); é o comboio voador que levanta o nosso olhar; é a montanha aveludada que nos protege dos ventos do norte; é o cervo que placidamente nos vigia.


É tudo isto em simultâneo que entra por nós adentro e faz acontecer o paraíso. Eu sinto-me invadido por uma leveza que evapora o passado cheio de memórias e preocupações. Só existe o presente. Nem sequer o futuro por ali se vislumbra.


Eis o paraíso na terra ou a terra do paraíso.


Vila Nova de Gaia, 16 de setembro de 2012. Revisto me 16 de outubro de 2012.

11.Set.12

O apaga portas

 

 

As coisas são como são. E para mim, até há bem pouco tempo, duas das portas cá de casa eram duas coisas que rangiam. Chiavam, direi melhor.


Um dia, já saturado daquele gemido, no regresso a casa saí na saída seguinte à habitual e comprei um spray para lubrificar as dobradiças das portas.


Na companhia do rapaz (há coisas só de homens!) aplicamos o spray, alternadamente, eu numa porta, ele noutra.


No final, abrimos e fechamos ambas as portas sem qualquer ruído. O produto tinha cumprido uma das cinco funções anunciadas na frente da lata. Guardei-a na despensa e nunca mais pensei no assunto.


Nunca mais pensei no assunto até ao momento em que comecei a servir-me das portas e deixei de as ouvir. Ora, como tinha dito anteriormente, para mim, aquelas portas eram duas coisas que rangiam. Passando ao estado de mudas, as portas já não eram portas, tinham deixado de existir.


Afinal eu tinha comprado, não um produto que elimina ruídos, mas que apaga portas.


Vila Nova de Gaia, 11 de setembro de 2012.

11.Set.12

As cortinas

 

Durante uma semana, aquando das limpezas gerais, tivemos a cozinha sem cortinas. Tudo seria normal se do outro lado da rua não existisse um outro edifício com quase a mesma altura do nosso. O último andar do prédio em frente está ao nível do nosso que é o penúltimo.


Portanto, os nossos vizinhos do outro lado da rua poderiam assistir a tudo o que acontecia na nossa cozinha. Não sei as vantagens que daí retirariam. Sei, isso sim, os inconvenientes que aquela nudez trouxe para os da casa, em especial os adultos.


Passamos todos a ter mais cuidado no modo de nos vestir (mais agasalhados).


Quanto a mim, foi uma semana em que me senti constantemente vigiado por alguém que nunca vi, pois nem sequer olhava para o exterior. Sempre que me aproximava da cozinha preparava-me mentalmente para me esmerar nos atos e evitar omissões.


Nunca, como naquela semana, deixei restos em cima do balcão para depois os despejar no saco do lixo que está na lavandaria. Eram imediatamente arrumados. Uma autêntica limpeza. Não ouve mais esquecimentos e consequentes amuos conjugais.


Durante a manhã, o pequeno almoço era tomado com muito mais calma.


À noite, o jantar era mais organizado, todos ajudavam a pôr e a levantar a mesa e conversávamos mais.


Estivemos todos à prova.


A ausência das cortinas foi real, o mesmo já não direi dos olhares dos nossos vizinhos que, seguramente, não passaram a semana toda em vigília, consecutiva ou alternada, à nossa cozinha.


Mesmo assim, a transparência de um dos palcos onde se desenrolam as cenas da nossa vida conjugal e filial afetou positivamente o nosso desempenho.


Primeiro, tomamos consciência plena dos nossos deveres enquanto membros de uma comunidade e depois quisemos cumpri-los pontualmente para benefício da mesma.


Colocadas as cortinas, deixamos de ter sobre nós os supostos olhares dos nossos vizinhos, para passarmos a ter o olhar incisivo e implacável da nossa consciência que não nos perdoa qualquer fingimento ou contradição.


Se pensávamos que estávamos mal sem as cortinas, agora estamos ainda pior com elas. É que a todo o momento podemos ser atingidos pelas esporas da culpa que nos picam a alma sem dó nem piedade.


Vila Nova de Gaia, 11 de setembro de 2012.

09.Set.12

A tampa


 

Isto é superior a mim. Não consigo evitar.

 

Sempre que me deparo, nas minhas caminhadas, com aquela tampa desenquadrada[1] sinto uma reação que não designarei por revolta, mas de desconforto, de desagrado.

 

É que aquela posição não é a correta.

 

Quem calcetou o chão teve o cuidado (a arte) de alinhar a faixa de calcário preto do interior da tampa com a do exterior. Tudo foi feito para que a faixa preta fosse contínua, sempre da mesma largura, sem alterações. Tudo foi bem feito!

 

Mas alguém veio desalinhar a faixa. Por negligência leve ou grosseira ou até por dolo, alguém provocou aquela anomalia, aquela desconformidade. Fez mal feito!

 

O desalinhamento é sinónimo de erro. O erro, por sua vez, significa fealdade. A fealdade é uma coisa má. A maldade é a ausência do bem (como se fosse uma coisa abandonada) que originará, inelutavelmente, a destruição do ser.

 

Em conclusão, e por mais incrível que pareça, a tampa torcida é um prenúncio de morte.

 

Vila Nova de Gaia, 9 de setembro de 2012.


[1] Situa-se ao fundo do jardim Soares dos Reis, em V. N. de Gaia, no final da escadaria dos prédios que confrontam com aquele.

01.Set.12

O lixo

De entre as tarefas domésticas que me estão atribuídas em casa, aquela que me dá mais prazer é a de levar os sacos do lixo ao contentor que temos na casa do lixo.

 

Por um lado, sinto-me satisfeito por contribuir na lida doméstica, por pouco que seja. Por outro, vejo a lavandaria arrumada e limpa.

 

É muito importante deitar fora o que não interessa, o que é inútil para nós. Coisas que deixaram de fazer sentido na nossa casa e que passarão a ter sentido noutro lugar.

 

Em boa verdade não deitamos fora as coisas. Mudamos as coisas de lugar. Pomos as coisas fora da nossa casa.

 

É como arquivar processos. Deixam de estar no raio da nossa ação. Em rigor: desaparecem da nossa vista.

 

A lixeira e o arquivo são, por isso, um lugar como outro qualquer. São lugares de transição. Quem sabe se aqueles não serão os melhores lugares para a coisa ou se não serão uma passagem para um lugar ainda melhor?

 

Tal como as coisas, nós nunca sabemos qual o melhor momento ou o lugar ideal das nossas vidas.

 

Vila Nova de Gaia, 26 de agosto de 2012.