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Histórias mal contadas

São factos do quotidiano, aparentemente sem qualquer importância, aos quais o autor dá a relevância do absoluto, do todo. É a sua obra-prima, sem prejuízo de outro entendimento.

Histórias mal contadas

São factos do quotidiano, aparentemente sem qualquer importância, aos quais o autor dá a relevância do absoluto, do todo. É a sua obra-prima, sem prejuízo de outro entendimento.

31.Out.12

Ao saber da SICAL


O café, para mim, sempre foi um perigo. Uma ameaça que os meus pais me alertavam quando se falava no assunto. Por isso, quando jovem, comecei por tomar pingos, para cortar o efeito da cafeína (imaginava eu). A minha preferência recaía então sobre o café da marca Buondi, por ser mais cremoso, a que acrescia um logo perfeito. Se saía da minha zona de referência ficava desesperado à procura de um estabelecimento com aquela marca. Uma autêntica obsessão pela aparente perfeição (sabor e design) da marca Buondi.


Não sei quando perdi o medo ao café estreme e decidi bebê-lo sem pingo de leite, mas com açúcar. Para minimizar os efeitos do açúcar que, com a idade, passei a encarar como um verdadeiro veneno, usava metade do pacote. O sabor não era amargo, mas também não era doce. Bebia-se. Nesta fase, ainda tendia para o Buondi, mas já tolerava outras marcas.


A última mudança de gosto deu-se quando passei a frequentar, diariamente, um café com a marca SICAL. Era o único nas redondezas, pelo que não houve outro remédio senão habituar-me àquele sabor.


Com a SICAL, por mais que acrescentasse açúcar ao café, ele não deixava de ser amargo, e como acrescentava pouco, a diferença de paladar era sempre mínima.


Tudo se transforma quando passei a conviver com pessoas que, simplesmente, bebiam o café amargo, sem grão de açúcar. É nesta altura que junto o útil (deixar de consumir açúcar) ao agradável (beber café). Decido, então, sem custo, tomar o café da marca SICAL, já por si amargo, agora sem açúcar. Amargo por amargo, passei-o a beber sem açúcar. E assim me mantive, até hoje, com muito gosto.


E para ser sincero, não sei qual o factor mais preponderante na mudança radical: se o medo do açúcar (punha o mínimo possível, daí a habituação ao amargo), se a falta de alternativa ao café de marca SICAL, que forçou a habituação ao sabor amargo (resistente ao açúcar). O facto é que a mudança se deu.


Mas a SICAL não é só sabor, também é saber.


Quando entrei nos trinta, fundei e dirigi a revista FACTOR LOCAL. Pois bem, consumi horas dos meus dias a tentar contornar graficamente a fealdade da posição da letra C entre o A e o T na palavra FACTOR. Naquele local, o C não ficava, como não fica, nada bem. Estava desenquadrado, pensava eu. Como existe um espaço vazio entre a letra C e T, parecia que o vácuo me arranhava o olhar. Era incomodativo[1]. O mesmo sucedia com o espaço entre a letra C e a A da palavra LOCAL, mas, apesar de tudo, mais aceitável. Assim, quando via, em qualquer lado e em qualquer suporte, uma daquelas palavras punha-me a apreciar a arte dos designers para contornar aquela fealdade.


Enfim, convenci-me que tinha gerado um título apropriado (perfeito), mas nada bonito. Daí que nunca tenha sentido muito orgulho no nome (logo) FACTOR LOCAL.


O tempo foi passando e eu fui convivendo melhor com aqueles dois traumas: o fim prematuro da revista e o desacerto do logo.


A cura, se assim se pode dizer, aconteceu quando conheci, pelo paladar, a SICAL, e passei a observar com mais cuidado (valha a redundância) a composição e arrumação da palavra. Afinal, até que a palavra (SICAL) não era feia, mau grado o vazio entre a letra C e a A, aliás atenuado pela aproximação artificial destas duas letras[2].


Depois de muito saborear e de muito observar o design daquela marca, acabei rendido à saudável coexistência da aparente imperfeição do logo com o sucesso comercial do produto SICAL.


Portanto, e em conclusão, se sentia muito orgulho no conteúdo editorial da revista (mas impossível de sobreviver face aos custos de produção), agora também sinto muito orgulho na escolha das palavras: FACTOR LOCAL.


Eis como do amargo se fez doce ou de como da imperfeição, bem vistas as palavras, se fez perfeição.


Vila Nova de Gaia, 30 de outubro de 2012.



[1] Ironia do destino. Com o novo acordo ortográfico o C foi suprimido na palavra FACTOR, logo, o logo, hoje, já seria diferente, muito mais compactado, mais coerente. Enfim, muito mais bonito.

[2] Ver o exemplo do logo, EL PAÍS, onde se aproxima o P do A e este com o I. Uma perfeição de arrumação. Ver também o logo FIAT em que a letra A se encolhe face à extensão de um dos braços do T  (16-12-2012). Ver ainda o logo dos cafés DELTA em que o braço direito do T termina em ângulo de 45º para alinhar paralelo à letra A (em forma de DELTA).

22.Out.12

Remição e/ou Remissão

 

Foi um dia em cheio.

 

De manhã até ao final do dia, incluindo coffee brake e almoço, foram muitas as vezes que revivi alguns episódios passados durante a minha infância, adolescência e idade adulta.

 

Momentos plenos de remissão (ato de remeter) e de remição (ato de conseguir a libertação de outrem ou de si).

 

§

Remição (remir + -ção)

s. f.

1. Acto.. ou efeito de remir ou de se remir.

2. Desobrigação do cumprimento de uma obrigação ou pena. = QUITAÇÃO, RESGATE

Confrontar: remissão. remir - Conjugar (latim redimo, -ere, resgatar, salvar, arrendar)

v. tr.

1. Adquirir de novo. = CONSEGUIR, RESGATAR

v. tr. e pron.

2. Conseguir a libertação de outrem ou de si. = LIBERTAR, LIVRAR

3. Tirar ou sair do perigo ou da condenação. = SALVAR ≠ PERDER

4. Ser reabilitado em relação a (crime, falha ou pecado); tornar-se puro em relação a. = EXPIAR

5. Oferecer ou receber compensação. = COMPENSAR, RESSARCIR

v. pron.

6. Sentir arrependimento. = ARREPENDER-SE

Sinónimo Geral: REDIMIR

 

§

 

Remissão (latim remissio, -onis, restituição, entrega, afrouxamento, brandura, indulgência)

s. f.

1. Acto.. ou efeito de remitir.

2. Disposição para desobrigar o cumprimento de uma obrigação ou pena. = CLEMÊNCIA, INDULGÊNCIA, MISERICÓRDIA, PERDÃO

3. Acto.. de remeter.

4. Acção.. de transferir a atenção do leitor ou consulente para outro texto ou outra parte do texto (ex.: remissão de um dicionário).

5. Falta de energia. = FRAQUEZA, FROUXIDÃO

6. Diminuição do sofrimento ou do cansaço. = ALÍVIO, CONSOLO

7. [Medicina] Diminuição momentânea dos sintomas de uma doença. = REMITÊNCIA

8. [Medicina] Desaparecimento da febre entre os acessos de malária. = REMITÊNCIA

sem remissão: inexoravelmente, impreterivelmente.

Confrontar: remição.

 

in http://www.priberam.pt/

 

Coimbra, ISCAC, 20 de outubro de 2012.

 

14.Out.12

A cidade piano

A minha companheira fincara as duas mãos em cima do parapeito, prescrutando o abismo com uma indiferença de esfinge desempregada. Depois, afastou as mãos um pouco, ligeiramente soerguidas, como se percorresse um teclado. A cidade assemelhava-se a um enorme piano, obscuramente entreaberto sob o tampo da noite.

 

David Mourão-Ferreira in As quatro estações, Editorial Presença, 6.ª edição, página 39.

13.Out.12

Pontuação feminina

O mais detestável, nas mulheres que já ultrapassaram os quarenta, costuma ser, durante o exórdio, o abuso dos dois pontos; e o ponto de exclamação, esse, apenas se tolera até aos vinte e cinco. Mas as reticências, em qualquer idade, são ainda o melhor: pedras soltas colocadas no leito do rio, entre as duas margens, que, por um lado, facilitam a travessia e, por outro, lhe dão um semblante de aventura. Só mais tarde, se for caso disso, é que verdadeiras pontes devem ser lançadas. Há que nos contentarmos, de princípio, em ir saltando de pedra em pedra.

 

David Mourão-Ferreira in As quatro estações, Editorial Presença, 6.ª edição, página 45.

11.Out.12

Metáfora


Toda a boa metáfora é como um relâmpago que, de repente, incendeia a noite.

 

José Luís Martín Descalzo in Razões para o amor, Editorail Missões Cucujães, página 99.

 

07.Out.12

Trilho: Percursos Marginais do Rio Minho

 

 

 

 

 

Ver ficha técnica do Trilho aqui.

 

Ao contemplar a vila de Melgaço, do cimo da Torre de Menagem, pude descobrir uma das fontes inspiradoras do pensamento de Álvaro Domingues. Aquela terra é de facto um laboratório das transformações paisagísticas que vêm sucedendo no resto do país. O que, aliás, se pode comprovar na última fotografia supra e onde se vê a modelação de um terreno em socalco (será para a plantação de vinha de casta Alvarinho?). Chama-se a isto: em flagrante modelação geográfica.

 

NOTA: à entrada da Torre está à venda “A Rua da Estrada”.

 

Melgaço, 5 de outubro de 2012.

07.Out.12

Está aí alguém?

 

Enquanto eles se entretinham no Cantinho do Adro, na Rua Direita, eu entrei na igreja matriz.

 

A porta do lado esquerdo estava aberta e, ao contrário do habitual, entrei por ela. Dentro do templo o silêncio era absoluto, como era absoluta a ausência humana. Perante aquele vazio ia a perguntar:

 

- Está aí alguém?

 

Mas não sei como e porquê, outra vontade superior a mim se interpôs e mantive-me calado. Sentei-me a contemplar a presença do sagrado.

 

Eles chegaram, ajoelharam-se e, sem O convocarem em voz alta, puseram-se a falar com Ele.

 

À saída (outra vez pela porta do lado esquerdo de quem entra) ao relembrar aquela vontade reprimida fiquei surpreendido com a minha tendência natural para o sacrilégio.

 

Melgaço, 5 de outubro de 2012.