Realidade convexa
Há construções que não lembram ao Diabo.
Numa das vezes que me desloquei às Termas de S. Jorge, em Santa Maria da Feira, para levar o rapaz e a avó a banhos, forcei a comitiva a parar junto a uma moradia. A interrupção ocorreu a meio caminho entre a EN 326 e as Termas, para quem se dirige da EN 1.
O motivo da ocorrência estava dependurado no cimo de um prumo implantado no interior da casa, ali cosido[1] com o muro de vedação.
Era, nem mais nem menos, um espelho convexo.
Saí do carro e tirei, para espanto deles e de alguns automobilistas que por ali passavam, uma fotografia a tão insólito objeto.
Já tinha visto a afixação de espelhos convexos junto a entroncamentos, mas dentro de uma habitação é que nunca.
Seria ignorância minha?
Até àquele momento não poderia conceber (o que estava a ser contrariado por aquele caso) que alguém, voluntariamente, repito, voluntariamente, (sponte sua, como diriam os Romanos) se tivesse colocado numa situação que o forçasse a necessitar de usar um espelho convexo para sair à rua, de carro claro!
Mas o insólito tinha-se concretizado.
Do pouco que pude observar, por detrás da construção existia um longo terreno. Ora, o proprietário (isto sou eu a conjeturar), preocupou-se essencialmente em delimitar, até ao limite possível (malgrado a redundância) o seu espaço que confrontava com o domínio público (património rodoviário do município de Santa Maria da Feira). Para o efeito, construiu um muro de vedação bem na fronteira dos dois domínios. Não cedeu ao domínio público, aparentemente, nem um milímetro. Assim sendo, não recuou o suficiente para criar uma zona de proteção (normalmente em forma de trapézio) para que quando saísse de casa lhe fosse possível visualizar o trânsito de ambos os lados.
A agravar a situação, chapeou a grade que encima o soco em alvenaria.
Em resumo: teria de sair de casa às cegas.
Para ultrapassar esta limitação, relembro, voluntariamente criada por si, socorreu-se do espelho convexo como auxiliar na manobra.
Brilhante a ideia, como o espelho, aliás.
E como corolário da obra, o morador passou a ver a estrada municipal como se fosse uma realidade virtual, sendo o tamanho dos objetos visualizados sempre menor em relação ao objeto real (por exemplo: a estrada, os veículos e eu próprio quando tirei a fotografia).
O seu poder dominial manifestou-se em pleno. Não só mantinha intacta a totalidade da sua propriedade (direito absoluto), como foi capaz de reduzir o tamanho da estrada municipal.
Em conclusão: enquanto a maioria de nós vive no mundo real e pouquíssimos num mundo maravilhoso, ainda assim há quem viva num mundo convexo.
Caldas de S. Jorge (Fiães?) (Santa Maria da Feira), Abril de 2012.