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Histórias mal contadas

São factos do quotidiano, aparentemente sem qualquer importância, aos quais o autor dá a relevância do absoluto, do todo. É a sua obra-prima, sem prejuízo de outro entendimento.

Histórias mal contadas

São factos do quotidiano, aparentemente sem qualquer importância, aos quais o autor dá a relevância do absoluto, do todo. É a sua obra-prima, sem prejuízo de outro entendimento.

18.Nov.12

Realidade convexa


Há construções que não lembram ao Diabo.


Numa das vezes que me desloquei às Termas de S. Jorge, em Santa Maria da Feira, para levar o rapaz e a avó a banhos, forcei a comitiva a parar junto a uma moradia. A interrupção ocorreu a meio caminho entre a EN 326 e as Termas, para quem se dirige da EN 1.


O motivo da ocorrência estava dependurado no cimo de um prumo implantado no interior da casa, ali cosido[1] com o muro de vedação.


Era, nem mais nem menos, um espelho convexo.


Saí do carro e tirei, para espanto deles e de alguns automobilistas que por ali passavam, uma fotografia a tão insólito objeto.


Já tinha visto a afixação de espelhos convexos junto a entroncamentos, mas dentro de uma habitação é que nunca.


Seria ignorância minha?


Até àquele momento não poderia conceber (o que estava a ser contrariado por aquele caso) que alguém, voluntariamente, repito, voluntariamente, (sponte sua, como diriam os Romanos) se tivesse colocado numa situação que o forçasse a necessitar de usar um espelho convexo para sair à rua, de carro claro!


Mas o insólito tinha-se concretizado.


Do pouco que pude observar, por detrás da construção existia um longo terreno. Ora, o proprietário (isto sou eu a conjeturar), preocupou-se essencialmente em delimitar, até ao limite possível (malgrado a redundância) o seu espaço que confrontava com o domínio público (património rodoviário do município de Santa Maria da Feira). Para o efeito, construiu um muro de vedação bem na fronteira dos dois domínios. Não cedeu ao domínio público, aparentemente, nem um milímetro. Assim sendo, não recuou o suficiente para criar uma zona de proteção (normalmente em forma de trapézio) para que quando saísse de casa lhe fosse possível visualizar o trânsito de ambos os lados.


A agravar a situação, chapeou a grade que encima o soco em alvenaria.

Em resumo: teria de sair de casa às cegas.


Para ultrapassar esta limitação, relembro, voluntariamente criada por si, socorreu-se do espelho convexo como auxiliar na manobra.


Brilhante a ideia, como o espelho, aliás.


E como corolário da obra, o morador passou a ver a estrada municipal como se fosse uma realidade virtual, sendo o tamanho dos objetos visualizados sempre menor em relação ao objeto real (por exemplo: a estrada, os veículos e eu próprio quando tirei a fotografia).


O seu poder dominial manifestou-se em pleno. Não só mantinha intacta a totalidade da sua propriedade (direito absoluto), como foi capaz de reduzir o tamanho da estrada municipal.


Em conclusão: enquanto a maioria de nós vive no mundo real e pouquíssimos num mundo maravilhoso, ainda assim há quem viva num mundo convexo.

 

Caldas de S. Jorge (Fiães?) (Santa Maria da Feira), Abril de 2012.



[1] Familiarizado com a palavra cosido depois das leituras de David Mourão-Ferreira, entre encostado ou colado, escolhi aquele primeiro termo.

12.Nov.12

Cosido ao parapeito

Enquanto prossegue a sua descida, sempre cosido ao parapeito para não a perder de vista,...

 

David Mourão-Ferreira in Vera e o acidente (As quatro estações), Editorial Presença, 6.ª edição, página 14.


---*---


Estou de costas, cosido a uma parede,...


David Mourão-Ferreira in Os Amantes (Os Amantes e outros contos), Editorial Presença, 10.ª edição, página 119.



10.Nov.12

O bocejo de Deus

 

Que Deus me perdoe, mas tenho de tornar pública esta história, até porque não tive culpa alguma.

 

Tudo se passou como a seguir descrevo sem sofismas ou más intenções.

 

Estava a assistir à celebração eucarística. Depois da homilia e antes da oração dos fiéis foi-me dada uma folha com duas versões do credo: a dos Apóstolos e a Niceno-Constantinopolitano.

 

Todos, em uníssono, fomos convidados a rezar a versão dos Apóstolos. Começo então a orar com a assistência seguindo o texto do folheto.

 

Acontece que depois de ter lido as quatro primeiras linhas (…Nosso Senhor,), se fosse um poema seriam versos, deu-me uma vontade irreprimível[1] de bocejar. Não pude evitar. Abri a boca e respirei fundo.

 

Além de ter ficado embaraçado, reagi com muita estranheza ao bocejo. É que, em momento algum, pensei ou desejei abrir a boca para respirar fundo. Tive a nítida sensação de que fui forçado a bocejar.

 

A situação era tanto mais invulgar, quanto excecional era a minha frescura matinal. Não me sentia nem cansado, nem fatigado e a cerimónia decorria de modo alegre e vivo.

 

Portanto, só por contágio do bocejo de outra pessoa, que estivesse cansada ou fatigada ou até, quem sabe, enfastiada com a oração, eu teria bocejado naquele momento e logo naquele lugar.

 

Quem teria bocejado antes de mim?

 

Do meu lado direito, Santo António olhava-me mudo e calado. Do meu lado esquerdo, não vi ninguém com gestos comprometedores. Atrás de mim, os restantes presentes mostravam-se muito concentrados na leitura. À minha frente, a compenetração era unânime. No teto, os anjos e os santos pairavam placidamente sobre a assembleia.

 

A missa terminou, mas as minhas suspeitas de contágio não ficaram por ali. Vieram comigo até casa.

 

Tinha de tirar a limpo aquela dúvida que me embaraçava.

 

Tudo se resolveria com uma nova leitura do credo. Se bem pensei, melhor o fiz. Fechei-me sozinho no quarto e, na paz do Senhor, pus-me a rezar o credo dos Apóstolos.

 

Na mesma linha de há momentos atrás, a vontade de bocejar foi novamente irreprimível e o fenómeno repetiu-se: bocejei.

 

Olhei-me e descobri-O cheio de tédio.

 

É verdade! Deus tinha-se enfastiado com a oração e bocejara para mal dos meus pecados. Por isso, fiquei contagiado e, involuntariamente, também bocejei. Estava tudo explicado.

 

Eis como do embaraço nasceu a luz.

 

Valadares e Santa Marinha (V. N. de Gaia), 21 de outubro de 2012.

§

 

Os bocejos são oos que fogem.

 

Por Ramón Gómez de La Serna, in Greguerías uma seleção e tradução de Jorge Silva Melo, Assírio & Alvim, julho de 1998, página 45.

 



[1] Hoje, dia 18 de novembro de 2012, reli o conto Tenório de Miguel Torga, in BICHOS, 19.ª Edição, e na página 71 fui confrontado com a frase: “Nenhuma vontade conseguia açaimar o grito irreprimível que o sufocava.” É interessante que no momento da redação deste texto (Bocejo) ainda me questionei sobre a escolha daquela palavra. Perguntei-me, na altura, como me tinha ocorrido aquele termo. Parte do mistério ficou agora desvendada.

04.Nov.12

Cortesia ligeira

 (Foto de NILTON FUKUDA/AE, in http://blogs.estadao.com.br/)

 

Era fim de tarde. Aproximei-me da estrada. O trânsito era intenso. As entradas eram curtas. Fui forçando a passagem. Esperei dez ligeiros, cinco pesados e três motociclos. Fiquei impaciente. Senti-me pressionado. Pesado. Mas a minha vez haveria de chegar. Um ligeiro reparou em mim. Abrandou a marcha intencionalmente. A abertura tornou-se longa. Do outro lado, a fila era larga. Entrei finalmente. Agradeci a cortesia. Fiquei aliviado. Mais leve. Mais ligeiro[1].


Dentro da fila avistei ao longe outro impaciente. Também queria entrar na minha fila. Nem hesitei. Abrandei a marcha. Dei sinal de luzes. O outro, ligeiro, entrou e agradeceu. Fiquei ainda mais leve. Ainda mais ligeiro. Mas não o suficiente para voar até casa.


Esgueira (Aveiro), 24 de outubro de 2012.



[1] Na Estremadura, ligeiro tem, entre outros, o significado: o carneiro que serve de guia ao rebanho (cfr: http://www.priberam.pt/)