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Histórias mal contadas

São factos do quotidiano, aparentemente sem qualquer importância, aos quais o autor dá a relevância do absoluto, do todo. É a sua obra-prima, sem prejuízo de outro entendimento.

Histórias mal contadas

São factos do quotidiano, aparentemente sem qualquer importância, aos quais o autor dá a relevância do absoluto, do todo. É a sua obra-prima, sem prejuízo de outro entendimento.

26.Fev.13

Memória

 

O instrumento mais difícil de afinar é a memória.

 

António Avelar de Pinho in jornal i de 16/17 de fevereiro, página 38.

25.Fev.13

Falar com Deus

 

Aviso à entrada da igreja:

 

"Para falar com Deus não é preciso telemóvel.

Por favor desligue ou tire o som do seu telemóvel.

Obrigado."


 

S. Felix da Marinha, V. Nova de Gaia, 24 de fevereiro de 2013. 

24.Fev.13

Conto estrelas em ti… Teresa Guedes

 

 

Vivia-se o ano de 2002 quando descobri Teresa Guedes. Não posso precisar como a conheci. Suponho que através da obra “Em Branco” (Editorial Caminho, Livros do Dia e da Noite).

 

A descoberta não se ficou por aí.

 

Foi uma verdadeira paixão literária. Ainda me lembro da sofreguidão com que procurava os seus livros, o alimento do meu encanto. Recordo, em especial, a pesquisa dos textos de pedagogia de escrita criativa e de como o funcionário da Almedina, na rua de Ceuta, os basculhava nos fundos do piso inferior.

 

É que ler aqueles livros tinha de ser naquele dia. Amanhã, eu pressentia-o, era sempre longe demais[1]. Muito longe.

 

A sofreguidão foi-se saciando com os poemas que me mandava, digo, publicava. Entretanto, a nossa relação passou a ser mais tranquila, mais serena.

 

Até que a notícia chegou.

 

Num dia de Primavera do ano de 2008, quando visitava a Feira do Livro no Palácio de Cristal com o Leunam, cruzei-me com José António Gomes (ou com João Pedro Mésseder? não posso precisar) e aproveitei para o questionar sobre vários assuntos. No final soube da morte da Teresa ocorrida no dia 25 de Setembro de 2007 (aqui, final, significa interrupção forçada pela tristeza, pois não havia condições para prosseguir).

 

Entretanto, disse adeus à tristeza, disse até sempre. Era tempo de viver. Hoje relembro-a e volto a devorar os seus sonhos que também são meus.


[1] Parte de um verso da canção dos Rádio Macau: Amanha é sempre longe de mais.

21.Fev.13

Azul nebulizado

 

É noite e está frio, muito frio. Estranhamente ainda não chegou o nevoeiro. Há de chegar, tenho a certeza, eu é que não vou esperar por ele. Já foi tempo em que do cimo da encosta o via inchar de mansinho como claras em castelo. Às vezes crescia tanto que me encarcerava os sonhos. Outras inundava as torres da igreja matriz e deixava à mostra duas cruzes (não bastava uma, eram duas), quais mastros do barco que eu comandava até encalhar no travesseiro, perdido de sono.

 

É noite, como dizia, e eu estou no fundo do vale. Passo sobre o rio Simão e entro na auto estrada. À força do gasóleo, subo, subo e continuo a subir[1]até atingir a garganta da serra e, de um só trago, ser engolido pela voracidade do outro mundo. Digo outro porque é um mundo estranho, não é o mundo onde vivi diariamente até aos 29 anos e que me formou.

 

Enfim, com isto tudo já estou na praça da portagem de Ermesinde a deslizar entre as cabines. Deixo para trás, além do vale, a Susana Félix que me sussurra, na TSF, que para bom entendedor meia palavra basta.

 

Já falta pouco, só restam mais três músicas e logo logo estarei em casa, na outra casa, para ser mais preciso.

 

Quando chego, à entrada, e sem lhe perguntar nada, ela diz-me:

- Foi há minutos[2]!

Abro a porta e por efeito da luz azulada do aparelho nebulizador, vejo-lhe (também podia ter escrito beijo-lhe) o rosto mascarado de serenidade. Não resisto e enfio, devagarinho e sob o olhar apreensivo dela, os galhos[3] da mão na floresta dourada que lhe plantei no alto da testa. E não acorda. Encalhou no travesseiro, perdido de sono (dizem-me os olhos dela). Eu é que nunca me poderia deitar sem fechar o gesto que ficou suspenso desde a hora do almoço. E ela compreendeu.

 

Valongo, Baguim do Monte, Ermesinde, Águas Santas, S. Mamede Infesta, Pedrouços, Paranhos, Campanhã, Oliveira do Douro, Mafamude e Santa Marinha, 14 de fevereiro de 2013.



[1] Ainda pensei em repetir o verbo até que o tempo da viagem coincidisse com o tempo da leitura, mas desisti, pois tinha pressa em chegar a casa.

[2] A Susana sempre tinha razão.

[3] Segundo João Pedro Mésseder, uma mão faz-se de galhos, in Versos com reversos, Editorial Caminho, 1998, página 37.

17.Fev.13

Lâmpada da paciência, Carlos de Oliveira

Também semeio florestas, mais enredadas que as do padre Bernardes, autor elegante e claro, dizem (eu não gosto). Escrevo e cada página é a maranha anoitecida. Emendas, riscos, setas para as margens do papel; os acrescentos metem-se uns pelos outros como as frondes enoveladas. Mal se vê dentro destas frases. Só com a lâmpada da paciência. Felizmente não falta paciência a Gelnaa, que se tornou o meu criptógrafo. Decifra a escrita semi-secreta e copia-a à máquina. Torno a corrigir, a emaranhar. Nova cópia, novas correcções. Etc. Não sou nenhum Flaubert (paradigma habitual do escritor que tritura as palavras até à náusea) mas custa-me deixar o trabalho a meio. Faço o que posso por ele. Quase nada.


Carlos de Oliveira, in O aprendiz de feiticeiro (Na floresta), Assírio & Alvim (2004), página 124.

10.Fev.13

Alquerubim

[Pescaria em Alquerubim (1924) in http://imagensdealbergaria.blogspot.pt/]
 

Alquerubim é uma freguesia do concelho de Albergaria-a-Velha, situada na margem direita do Vouga, na fértil área aluvial do rio, na zona fronteira às confluências do Marnel e do Águeda, sendo habitada, desde tempos imemoriais, por querubins que nas horas vagas se dedicam à pescaria.

 

Alquerubim, 7 de fevereiro de 2013.

09.Fev.13

Do retrovisor


Paro no sinal vermelho (é quase sempre assim quando saio de casa[1]). Olho pelo retrovisor e vejo-o, entusiasmado, a comentar com ela algo sobre os carros adormecidos no stand da Mercedez. Estica o pescoço para ver melhor através da janela do lado dela, enquanto ela, de olhar vazio, o ouve sem reagir. E junta ao falar, os gestos da mão direita dele. E ela continua de olhar vazio. Não está a ver nada. Não está nem ali. Eu, com um olho no retrovisor e outro no semáforo, aguardo ordem de partida. Passa a verde e avanço. Estou a chegar ao outro semáforo, também com sinal vermelho e, outra vez pelo retrovisor, vejo-os, só agora, a iniciar a descida. O tempo da ausência deles gastei-o eu a alcançar o novo semáforo[2]. Não posso é garantir se a ausência dela se prolongou por mais tempo, pois o sinal passou a verde e eu avancei.

 

Vila Nova de Gaia, 3 de janeiro de 2013.



[1] Ao Jorge Sousa Braga sucede sempre o mesmo quando chega a casa. (cfr: O semáforo vermelho in O Novíssimo Testamento e outros poemas, Assírio & Alvim, abril de 2012, página 47)

[2] Esta frase foi inspirada numa outra frase: O tempo que demorou a descrição gastámo-lo nós a chegar, da autoria de Carlos de Oliveira, in O aprendiz de feiticeiro, Assírio & Alvim, (Chuva) página 82.

01.Fev.13

As rotundas da ternura


Chego mais cedo do que ela. Aguardo na rotunda que o meu rapaz apareça. Não aparece o meu rapaz, mas aparece o dela. Logo que entra na rotunda corre o olhar de uma ponta à outra e outra vez, de uma ponta à outra, agora em sentido inverso. A ausência da mãe fá-lo encostar a angústia à esquina do banco. Sofro com ele a espera dela. E ela aparece com os olhos a estalar de ternura que incendeiam de ternura os olhos dele que fazem ricochete nos meus. Nisto, o meu rapaz já me está a entrar pela porta de trás a perguntar pela mãe. Digo-lhe que a vamos buscar à outra rotunda. Mas mesmo assim liga-lhe (quase nunca percebo aqueles diálogos de monossílabos). Estamos, agora, os dois noutra rotunda à espera dela. E ela aparece. Vem com os olhos a estalar de ternura para nós (?) e um pouco envergonhada (apanhei-a em flagrante!). Dá uma corrida em direção ao carro, entra e é esganada pela saudade dele. Faço-me desentendido. Quer dizer: mostro-me atento à condução. Enquanto se recompõem sinto um calafrio a percorrer-me a espinha. Tal e qual como me sucedia quando a minha mãe, para me acordar, me enfiava as mãos frias pelas costas abaixo e depois se ria, com os olhos a estalar de ternura, do meu estremunhar maternal.


Rotunda do Largo dos Aviadores e de Pádua Correia, Vila Nova de Gaia, 31 de janeiro de 2013.