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Histórias mal contadas

São factos do quotidiano, aparentemente sem qualquer importância, aos quais o autor dá a relevância do absoluto, do todo. É a sua obra-prima, sem prejuízo de outro entendimento.

Histórias mal contadas

São factos do quotidiano, aparentemente sem qualquer importância, aos quais o autor dá a relevância do absoluto, do todo. É a sua obra-prima, sem prejuízo de outro entendimento.

28.Jun.13

A sovela


Ela comprou dois pares de sandálias. Um de cor azul e outro de cor bege. Ambos tinham o mesmo número e estavam confortáveis. Podiam era ficar mais ajustados aos pés. Depois de apertada a fivela, havia uma pequena folga que seria facilmente eliminada com mais um furo.


De uma das saídas à praia, no regresso a casa e sem mim, ela procurou um super rápido e furou as hastes de um dos pares.


As sandálias ficaram perfeitas.


O outro par ficaria igual. Desta vez fui com ela e com o rapaz ao sapateiro. Era um homem de raça eslava (talvez ucraniano). Os olhos azuis, o cabelo louro e as entradas profundas e redondas denunciavam-no. O sotaque acabaria por tirar todas as dúvidas. Com uma das mãos pegou na sandália e com a outra agarrou num instrumento que espetou na haste até abrir um buraco. Estava assim criado o furo necessário para apertar à justa a sandália.


Findo o serviço perguntei-lhe como se chamava a peça usada para furar a haste. Disse que não sabia. Eu disse-lhe que também não (por isso tinha perguntado). Mas tinha na ponta da língua uma palavra parecida: era sediela (escreve-se sedela).


Há muito tempo, não sei quando ou a que propósito, já tinha ouvido o nome da coisa, que acabei por não associar a nada em concreto, por exemplo a um lugar ou a uma pessoa. A palavra andou sempre perdida na minha cabeça. Vagueava ao Deus dará. Nunca encaixou em parte alguma. Não era de admirar, pois não havia criado uma caixa para ela.


Por isso, viemos para casa com dois furos, mas sem palavra.


Mais tarde, por força de investigação, acabaria por redescobrir a palavra sovela com que se nomeia a coisa. Porém, o termo que melhor descreve aquela ferramenta é a de furador ou de agulha de sapateiro (a associação entre a função e o nome resulta melhor).


Creio, sinceramente, que estamos perante um caso de rejeição mútua. A coisa não combina com sovela e esta última não tem nada a ver com o ato de furar couro, cabedal ou outro material.


Um desajustamento congénito, o qual, por mais furos que se façam, nunca se há-de remediar. A folga, aqui equivalente ao esquecimento, poderá crescer tanto que um dia destes a coisa se descalça definitivamente daquele vocábulo.


Armação de Pêra (Silves), 28 de junho de 2013.

26.Jun.13

Martinho Dias


Martinho Dias nasceu em Covelas, Trofa, onde reside e trabalha. Enquanto despertava para a realidade tinha sempre a companhia dos livros e histórias do pai, mais uma caixa de lápis de cor e outra de marcadores. Cresceu mais lentamente do que a paisagem que o rodeava e que lhe servia de modelo no início. Hoje, desenvolve um trabalho assumidamente figurativo, com alguns rasgos de abstracção, onde diferentes realidades, por vezes antagónicas, partilham o mesmo espaço da tela.

25.Jun.13

Bomba de relógio

 

O livro, qualquer livro é uma proposta feita à sensibilidade, à inteligência do leitor: são elas que em última análise o escrevem. Quanto mais depurada for a proposta (dentro de certos limites, claro está) maior a sua margem de silêncio, maior a sua inesperada carga explosiva. A proposta, a pequena bomba de relógio, é entregue ao leitor. Se a explosão se der ouve-se melhor no silêncio.

 

Carlos de Oliveira, in O aprendiz de feiticeiro (Micropaisagem), Assírio & Alvim (2004), página 184.


NOTA: João Pedro Mésseder, para descrever a mesma ideia, usou a imagem sugestiva da abertura de uma lata de refrigerante gaseificado.

24.Jun.13

Rodapé

 

Há palavras cujo sentido(s) ganha mais sentido(s) com o correr do tempo. Vamos atrás do tempo e eis senão quando a propósito de uma atividade ou de um acontecimento a palavra fica mais preenchida, mais rica. É como se nós tivéssemos para cada palavra uma caixa[1] e fossemos guardando nela o que fossemos vendo e sentindo.


Foi o que se passou com a palavra rodapé.


Na caixa/palavra rodapé guardei, então, os seguintes significados:


1. Espécie de cortina que cobre o âmbito da cama até ao chão.

2. Barra de madeira colocada ao longo da parte inferior das paredes.

3. Faixa da madeira, na parte ínfero-interior das grades de uma janela de sacada.

4. Parte inferior das páginas de um livro, jornal ou revista.

5. [Televisão] Texto corrido que surge na parte inferior ou superior do ecrã durante a emissão de um programa televisivo.

 

Pois bem, o segundo significado (barra de madeira) acabou por incorporar o sentido da função do próprio objeto. A revelação ou epifania, como se queira, foi contemporânea das várias obras de colocação de parquê que fui assistindo nos últimos anos. Ao ser confrontado com o desalinho dos tacos junto às paredes, percebi então que a barra se destinava a tapar a feiura do remate do parquê. Ou seja, o sentido da palavra a guardar na caixa deixou ser somente o da coisa (barra de madeira), passando a incorporar também o da causa da coisa.


Assim, acrescentei um sexto sentido à palavra:


6. Forma de ocultar a feiura do desalinho dos tacos junto às paredes, ou, somente, forma de esconder a fealdade.

 

Por contribuir, sem o saber, para o embelezamento discreto dos lugares da nossa vida, é por este que tenho mais simpatia e admiração.

 

Vila Nova de Gaia e Armação de Pêra (Silves), 24 de junho de 2013.



[1] Há quem lhe chame casa. 

24.Jun.13

Busca!

Ordem judicial[1].

 

Paulo Moreira Lopes, in Cão noturno e glossário canino, no prelo.



[1] Ver definição no n.º 2, do artigo 174.º do Código de Processo Penal.

22.Jun.13

A BULA de Junho


Neste mês de Junho, para superar as maleitas próprias da época, vamos poder tomar anti-depressivos, pró bióticos, analgésicos, anti-piréticos, antivirais e metanfetaminas receitadas por Vanessa Rodrigues e ilustradas por Carla Anjos. Relembra-se que não deve utilizar A BULA após o prazo de validade impresso no folheto, pois pode conter linguagem desatualizada e causar-lhe mau estar mental ou físico. A BULA não deve ser eliminada no balde do lixo, muito menos na via pública.

 

Para fazer download basta clicar na imagem.

  

Ver criação d’ A BULA aqui.

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