Vasco Gargalo
Se todos sabemos que era desejo do autor, o que é abundantemente expresso no seu trabalho e resulta, aliás, da interpretação do seu pensamento quanto à divulgação da sua obra, ou seja, que os frutos do seu labor fossem divulgados pelo maior número de pessoas possível;
Se todos sabemos que o autor publicou as suas obras sem intuito lucrativo, que nunca pretendeu ganhar dinheiro com a publicação dos seus livros;
Se todos sabemos que era avesso à exibição pública de fotografias suas e a dar autógrafos;
Se todos sabemos que as suas obras primavam pela simplicidade, pela ausência de fotografias e ilustrações;
Como é que podemos aceitar que ganhem dinheiro à sua custa, que fixem preços aos livros de modo a limitar a sua compra, que aponham nas primeiras páginas dos livros fotografias ou o seu retrato e divulguem a sua assinatura?
Como é que podemos, ainda, aceitar que um autocarro seja decorado com uma fotografia sua e passe a circular na cidade, quando todos sabemos quão cioso era da sua intimidade?
Não se pode aceitar!
Para mim, conhecendo-o como o conheço, acharia um sacrilégio, uma tratantice.
Nem se venha dizer que tenha consentido em vida tais devaneios, pois que se saiba as suas últimas palavras foram:
De alguma coisa me hão-de valer as cicatrizes de defensor do amor, da verdade e da liberdade, a tríade bendita que justifica a passagem de qualquer homem por este mundo.
Portanto, está mais que visto que o homem não andou a vida inteira a lutar pelo amor, pela verdade e pela liberdade, muitas vezes saindo do combate bastante ferido, para depois da morte se passar um pano sobre o assunto, como quem limpa o pó sobre uma cómoda antiga, passando a exibi-lo ao mercado como um escritor igual aos outros, como se nada fosse.
Aliás, eu escrevi homem, e pronto, o que está escrito está escrito, não volto atrás, mas o que na verdade deveria ter redigido era Cristo, como lhe chamou o irmão Adolfo Rocha.
Sim, é verdade!
Miguel Torga quis surgir aos nossos olhos como Cristo e viveu toda a sua vida nessa condição, como comprovam as suas últimas palavras.
Assim, toda a sua obra foi realizada em nosso nome e para nossa salvação[1].
Concluindo e resumindo, para mim, Miguel Torga sempre foi e será do domínio público, pois foi o próprio quem assim o instituiu e não há lei ou sentença que o possa contradizer.
E logo a ele!
§
José Carlos Vasconcelos afirmou que Miguel Torga "marcou uma geração" de autores e que queria editar os próprios livros para que fossem mais baratos.
[1] É muito curioso que Adolfo Rocha já previsse o que sucederia ao irmão quando afirmou: …Ele nas vossas mãos, fariseus, está perdido, bem sei… Não há Cláudia Prócula que o salve.” E a profecia cumpriu-se: pois são muitos os fariseus que desprezaram e ainda desprezam a sua obra redentora, insistindo lançá-lo na praça pública, para gáudio do poviléu, carregando a cruz do negócio às costas e com tudo à mostra, exceto as partes púdicas (valha ao menos isso).