O que para mim não passava de um desafio à autoridade, acabou por se revelar um caso de saúde pública.
Durante meses questionava-me como era possível o proprietário de um estabelecimento de velharias ter a carrinha diariamente estacionada em frente à garagem, ocupando um espaço superior ao correspondente à entrada daquela, sem que fosse interpelado pelas autoridades (polícia municipal ou de segurança pública).
O meu raciocínio era o seguinte: beneficiando o dono do estabelecimento do direito à rampa e consequente proibição de terceiros de aí estacionar, aproveitava-se daquela vantagem (impossibilidade de estacionamento) para fazer uso privativo do domínio público (espaço em frente à rampa) sem pagar qualquer compensação (taxa).
Para mim, estar-se-ia a pagar somente a taxa devida pela implantação da rampa (disponibilidade do acesso à via pública), mas usufruindo, ininterruptamente (a carrinha estava sempre ali estacionada) do espaço público que lhe permitia aceder à garagem, que, afinal de contas, estava preenchida com velharias, não permitindo o estacionamento no seu interior daquela carrinha ou de outro veículo.
Como a carrinha já constituía um prolongamento do interior da garagem, uma vez que também albergava velharias, o estabelecimento comercial expandia-se até ao domínio público.
Isto era o que eu pensava, mas pensava mal.
Num domingo à noite (1 de junho?), ao passear com o rapaz no local, deparei com o espaço público situado em frente à garagem e reservado ao estacionamento, delimitado por barreiras de proteção da C. M. de V. N. de Gaia.
Vim a saber, por intermédio dos condóminos do prédio ao qual pertencia a garagem, que no dia seguinte os serviços camarários iriam proceder à remoção de todos os objetos que o inquilino tinha depositado durante anos no interior daquela.
Em conclusão: o que se via à entrada da garagem era só uma amostra, pois o interior, constituído por cerca de 690 m2, encontrava-se totalmente atulhada com velharias (móveis, candeeiros e outros objetos de utilização doméstica).
Além disso, e ao contrário do que supus, a rampa já havia sido removida, dado que a garagem deixara de ter a utilidade normal (estacionamento de veículos) e passara a estabelecimento comercial. Nunca reparei na rampa. Só atentava no pavimento em blocos de pedra que ligavam a garagem à guia do passeio.
Os condóminos tinham razão: estávamos perante uma grave ameaça à segurança de pessoas e bens, atenta as características de combustível dos objetos que recheavam a garagem.
Na segunda feira seguinte (2 de junho?) começou então a limpeza da garagem, que ainda decorre, por sinal, e que o rapaz nos vai relatando quando chega a casa depois das aulas. No início, segundo ele, foi um grande aparato de polícias de ambos os lados da rua, mas aparentemente desnecessário, uma vez que o inquilino da garagem se mostrou colaborante no acarretar dos objetos para os contentores que estavam dentro das ditas barreiras de proteção.
Do que vejo, a carrinha já desapareceu, contudo as barreias ainda se mantêm. O despejo está para durar, presumo.
Analisando o caso à distância, acabei por passar do âmbito jurídico da situação (taxas e utilização privativa do domínio público), para o âmbito da saúde pública e privada.
Agora questiono-me: não estaremos, afinal, perante um caso de acumulação compulsiva?
Certo certo, é que nos últimos dias, e agora mesmo durante a redação deste texto, quando represento a limpeza da garagem e do espaço em frente à mesma, a produção da dopamina aumenta transmitindo-me uma sensação de bem estar, de limpeza, para ser mais preciso.
Vila Nova de Gaia, 16 de junho de 2014.