A nora de Deus
Cheguei a casa e contei-lhe o que havia ouvido de meu pai:
- Um vizinho tomou conta do terreno que fica em frente à casa dos meus pais. Como o homem tinha de regar a terra e a água da companhia é muito cara, foi buscar, ao balde, água à fonte pública, ali no meio dos Bacelos. Meu pai não suportou vê-lo subir a encosta carregado com os baldes para, de seguida, os despejar nos bidões e assim armazenar a água (fez-lhe recordar coisas passadas e pesadas, por certo!). Por isso, decidiu dar-lhe água do poço de furo.
Na hora de encher os bidões com a água do nosso poço, a mulher do vizinho exclamou: «… parece que foi Deus…!»
Até aqui ela ouviu e nada disse. Continuou entretida com os afazeres domésticos e de costas voltadas para a minha conversa.
Prossegui com mais algumas peripécias e acrescentei que ao sair da casa de meus pais me cruzei com o vizinho agricultor.
Neste momento ela torce o pescoço na minha direção, fixa-me o olhar e pergunta:
- E tu não lhe disseste que eras o filho de Deus?
Respondi-lhe com um sorriso contido.
Entretanto, o tempo fez o seu caminho, a água foi fazendo maravilhas e eu fiz-me esquecido.
Hoje, passados uns meses após aquele comentário, quando cheguei a casa vindo de meus pais carregado com um saco de pencas, tomates coração de boi, vagens e abobrinhas, e sem que ela tivesse tempo para gracejos, antecipei-me:
- São frutos da encosta do vale[1] para a nora de Deus!
Na troca dos frutos restituiu-me o sorriso contido que me havia extorquido à força da graça.
Vila Nova de Gaia, 20 de setembro de 2012.